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sábado, 12 de maio de 2012

FREI DEMÉTRIUS - INTRODUÇÃO BÍBLICA - Como a Bíblia chegou até nós - PARTE 5:



15. A recuperação do texto da Bíblia
Embora não se tenham notícias da existência de autógrafos do Antigo
e do Novo Testamento, existem numerosas cópias manuscritas e citações à
disposição dos estudiosos da Bíblia, que os ajudam em seus esforços no
sentido de recuperar o texto bíblico original. Em complementação às
evidências que vimos discutindo nos últimos capítulos, dispomos de
evidências de apoio ao texto bíblico, provenientes de suas várias traduções;
esse assunto será discutido nos próximos capítulos. No momento, nosso
interesse será a questão do papel da crítica textual na restauração do
próprio texto, e não a tradução desse texto nas inúmeras línguas.
O problema da crítica textual
O problema da crítica textual gira em torno de três questões básicas:
genuinidade e confiabilidade, evidências de manuscritos e as variantes.
Ainda que cada integrante desse assunto tenha sido mencionado
repetidamente em nossas discussões anteriores, é necessário que se dê um
tratamento mais minucioso aos tópicos em questão.
A autenticidade e a confiabilidade
Autenticidade é termo que se emprega na crítica textual em
referência à verdade sobre a origem de um documento, ou seja, sua autoria.
Como mostramos no capítulo 14, a autenticidade é assunto que concerne
primordialmente à Introdução Especial ao estudo da Bíblia, visto que se
relaciona a questão como autoria do texto data e destinatário dos livros
bíblicos. A Introdução Geral está interessada em questões como inspiração,
autoridade, canonicidade e confiabilidade dos livros da Bíblia. As
perguntas a que a autenticidade responde são estas: "Esse documento
realmente procede da fonte ou autor que se alega? É verdadeiramente obra
do escritor a que se atribui?".
Confiabilidade refere-se à verdade dos fatos ou do conteúdo dos
documentos da Bíblia. Trata primordialmente da integridade
(fidedignidade) e da credibilidade (verdade) dos registros. Em suma, um
livro pode ser autêntico sem ser confiável, se quem se professa escritor é
verdadeiramente seu autor, ainda que o conteúdo não expresse a verdade. E
mais: um livro pode ser confiável sem ser autêntico, caso seu conteúdo seja
verdadeiro, mas o autor alegado não seja realmente quem o escreveu.
Portanto, no estudo da Introdução Geral, o interesse está na integridade do
texto, com base em sua credibilidade e autoridade. Presume-se que
determinado livro bíblico, que recebeu autoridade divina e, por isso
mesmo, credibilidade, tendo sido transmitido com integridade, possui
automaticamente autenticidade. Se houver uma mentira no livro a respeito
de sua origem ou autoria, de que forma se poderia crer em seu conteúdo?
As evidências dos manuscritos
Creio que será benéfico que se faça, neste momento, um resumo das
evidências dos manuscritos, com respeito ao texto bíblico. Rever o assunto
nos revelará a diferença básica de abordagem da crítica textual de cada
Testamento.
O Antigo Testamento sobreviveu e chegou até nós em alguns
manuscritos completos, a maioria dos quais data do século IX d.C. ou é de
data posterior. Há, entretanto, abundantes razões para que acreditemos que
essas cópias são boas. Várias evidências apóiam essa afirmação: 1) as
poucas variantes existentes nos manuscritos massoréticos; 2) a harmonia
quase literal existente entre a maior parte da LXX e o Texto massorético
hebraico; 3) as regras escrupulosas dos escribas que copiavam os
manuscritos; 4) a similaridade de passagens paralelas do Antigo
Testamento; 5) a confirmação arqueológica de minúcias históricas do texto;
6) a concordância em grande parte com o Pentateuco samaritano; 7) os
milhares de manuscritos Cairo Geneza e 8) a confirmação fenomenal do
texto hebraico advinda das descobertas dos rolos do mar Morto.
O Novo Testamento. Seus manuscritos são numerosos, como também
são numerosos os textos paralelos, com variantes. Conseqüentemente, fazse
necessária a ciência chamada crítica textual, para que haja recuperação
do texto original do Novo Testamento. Mais de 5 000 manuscritos gregos
que datam do século II em diante dão testemunho do texto. Em
contraposição ao Antigo Testamento, que conta apenas com uns poucos
manuscritos bons, o Novo Testamento possui muitos manuscritos de
qualidade inferior, i.e., apresentam mais variantes.
As variantes
A multiplicidade de manuscritos produz número correspondente de
variantes. E que, quanto maior o número de manuscritos copiados, maiores
eram as possibilidades de erros cometidos pelos copistas. Todavia, em vez
de constituir empecilho à tarefa de recuperação do texto bíblico original,
essa situação na verdade se torna extremamente benéfica.
As variantes do Antigo Testamento são relativamente raras, por
diversas razões: 1) havia uma única tradição importante de manuscrito,
pelo que o número total de erros é menor; 2) as cópias eram produzidas por
escribas oficiais que trabalhavam seguindo regras rigorosas; 3) os
massoretas sistematicamente destruíam todas as cópias em que se
detectassem "erros" ou variantes. A descoberta dos rolos do mar Morto
serviu de espantosa confirmação da fidelidade do Texto massorético, o que
se comprova pelas conclusões de estudiosos do Antigo Testamento como
Millar Burrows, em sua obra The Dead Sea Scrolls; R. Laird Harris, em
Inspiration and canonicity of the Bible; Gleason L. Archer, Jr., A survey of
Old Testament introduction e F. E Bruce, Second thoughts on the Dead Sea
Scrolls [Uma investigação mais aprofundada sobre os rolos do mar Morto].
Uma soma total dos testemunhos desses estudiosos é que existem tão
poucas variantes entre o Texto massorético e o dos rolos do mar Morto, que
esses confirmam a integridade daquele. Sempre que há divergências, os
rolos do mar Morto tendem a dar apoio ao texto da Septuaginta (LXX).
Visto que o Texto massorético deriva de uma fonte singular, que
fora padronizada por estudiosos judeus aproximadamente em 100 d.C., a
descoberta de manuscritos anteriores a essa data esparge nova luz na
história do texto do Antigo Testamento de antes dessa época. Além das três
tradições textuais básicas do Antigo Testamento que já haviam sido
reconhecidas (massorética, samaritana e grega), os rolos do mar Morto
revelaram a existência de três outros tipos de textos: um protomassorético,
um proto-Septuaginta e um proto-samaritano. As tentativas por traçar as
linhas de relacionamento entre essas famílias de textos ainda se acham em
fase embrionária; a situação exige estudos profundos e dedicação.
Presentemente, o Texto massorético é considerado básico, visto que tanto o
texto samaritano (v. cap. 16) como a Septuaginta (v. cap. 17) baseiam-se
em traduções do texto hebraico. No entanto, os rolos do mar Morto
mostram que existem passagens em que a Septuaginta traz o texto
preferido. O problema básico é apurar a grandeza da diferença existente
entre as tradições hebraica e grega.
As variantes do Novo Testamento. As variantes do Novo
Testamento são muito mais abundantes do que as do Antigo, em vista do
maior número de manuscritos e das numerosas cópias não-oficiais que
foram feitas, de caráter particular. Cada vez que se descobre um manuscrito
novo, aumenta o número bruto de variantes. Pode-se ver isso comparandose
o número aproximado de 30 000 variantes, segundo cálculo de John
Mill, em 1707, às quase 150 000 computadas por F. H. A. Scrivener em
1874 e às mais de 200 000 recalculadas em nossos dias. Há certa
ambigüidade em afirmar que há cerca de 200 000 variantes, visto que essas
representam apenas cerca de 10 000 passagens do Novo Testamento. Se
uma única palavra foi escrita erroneamente em 3 000 manuscritos
diferentes, são contadas como 3 000 variantes. Uma vez entendido o
processo de contagem e se eliminem as variantes de ordem mecânica
(ortográfica), as variantes mais importantes que permanecem são
surpreendentemente poucas sob o aspecto numérico.
Para que se compreenda integralmente o significado das variantes
nos textos paralelos e se apure a redação correta (a original), é necessário,
primeiro, que se examine de que forma essas variantes se introduziram no
texto bíblico. Embora esses princípios também se apliquem ao Antigo
Testamento, são usados aqui apenas com referência ao Novo.
Em geral, os estudantes cuidadosos da crítica textual acreditam
haver dois tipos de erros: os não-intencionais e os intencionais.
As alterações textuais não-intencionais de vários tipos surgem da
imperfeição natural do ser humano. São numerosas, e aparecem na
transcrição dos textos.
Os erros da vista humana, por exemplo, resultam em vários tipos de
variantes. Dentre esses, há os que resultam da divisão errônea de uma
palavra, o que acaba por gerar novas palavras. Visto que os manuscritos
originais não separavam as palavras entre si, mediante espaços, a divisão
mental errônea de quem lia e copiava a palavra redundava em novo texto
— errôneo. Vamos usar um exemplo em português:
[ENCONTREIMECOMAMADOCASTELOBRANCO]
poderia significar
[ENCONTREI-ME COMAMADO CASTELO BRANCO.]
ou
[ENCONTREI-ME COMAMÁ DO CASTELO BRANCO.].
A omissão de letras, de palavras e até de linhas inteiras do texto
ocorria quando um olho astigmático pulava de um grupo de letras ou
palavras a outro grupo semelhante. Esse erro em particular é causado por
homoteleuto (finais semelhantes). Quando apenas uma letra está faltando, o
erro se chama haplografia (grafia simples). Repetição é o erro oposto à
omissão. Quando a vista apanhasse a mesma letra ou palavra duas vezes,
esse erro era chamado de ditografia. Foi a partir de um erro desse tipo,
com alguns manuscritos chamados minúsculos, que surgiu o seguinte
texto: "Qual quereis que vos solte? Barrabás, ou Jesus, chamado Cristo?"
(Mt 27.17).
A transposição é a inversão de duas letras ou palavras, e
tecnicamente se denomina metátese. Em 2Crônicas 3.4, a transposição de
letras alterou as medidas do pátio do templo de Salomão para 120 côvados
em vez de 20, como corretamente aparece na LXX. Outras confusões com
letras, abreviaturas e inserções de escribas explicam os demais erros desses
profissionais da cópia. Esse é o caso sobretudo no que diz respeito às letras
do hebraico, que também são usadas como números. Pode-se ver alguma
confusão no Antigo Testamento, quando há divergência entre os números
de passagens correspondentes. Veja-se, e.g., 40 000 em 1Reis 4.26 em
oposição a 4 000 em 2Crônicas 9.25; os 42 anos em 2Crônicas 22.2,
contra-pondo-se à anotação certa de 22 anos em 2Reis 8.26, é erro que
também se enquadra nessa categoria.
Os erros decorrentes da audição só ocorriam quando os manuscritos
eram copiados por um escriba que ouvia o ditado de quem os lia. Isso
explica por que alguns manuscritos (depois do século v d.C.) trazem
kamelos (corda) em vez de kamêlos (camelo), em Mateus 19.24;
kauthasomai (ele queima) em vez de kauchasomai (ele se gloria) em
1Coríntios 13.3, e outras alterações semelhantes no texto do Novo
Testamento.
Os erros de memória não são numerosos, mas por vezes um escriba
se esquecia da palavra exata na passagem e a substituía por um sinônimo.
É possível que se tenha deixado influenciar por uma passagem ou verdade
paralela, como no caso de Efésios 5.9, talvez confundida com Gálatas 5,22,
mais a adição de Hebreus 9.22: "... não há remissão [de pecados]".
Os erros de julgamento em geral são atribuídos à má iluminação
ambiental ou à má visão do escriba que copiou o manuscrito. Às vezes as
notas marginais eram incorporadas ao texto nesses casos, ou tais erros
seriam resultado da sonolência do escriba. Sem dúvida alguma teríamos
uma dessas causas na raiz da redação variante de Joio 5.4, de 2Coríntios
8.4,5 etc. Às vezes é difícil diferenciar o caso e dizer se determinada
variante resultou de um julgamento errôneo ou de mudanças doutrinárias
intencionais. Sem dúvida 1João 5.8, João 7.53 - 8.11 e Atos 8.37
enquadram-se em uma dessas categorias.
Os erros de grafia são atribuídos a escribas que, graças a um estilo
imperfeito ou a um acidente, escreviam de modo pouco definido ou
impreciso, e assim cometeram erros posteriormente enquadrados como
erros de visão ou de julgamento. Em algumas ocasiões, por exemplo, o
escriba poderia esquecer-se de inserir certo número ou palavra no texto que
estava transcrevendo, como no caso da omissão de número em 1Samuel
13.1.
As mudanças intencionais explicam grande número de variantes,
ainda que a vasta maioria seja atribuída a erros não-intencionais. Erros
cometidos de propósito poderiam talvez ter sido motivados por boas
intenções, mas é certo que são alterações deliberadas do texto.
Entre os fatores que influíram na inserção de alterações deliberadas
num texto bíblico estão as variantes gramaticais e lingüísticas. Essas
variantes ortográficas na grafia, na eufonia e no léxico repetem-se muito
nos papiros; cada tradição escribal tinha idiossincrasias próprias. Dentro
dessas tradições o escriba poderia tender a modificar seus manuscritos, a
fim de fazer que se conformassem com as tradições. As mudanças, nesse
caso, incluíam nomes próprios, formas verbais, acertos gramaticais,
mudanças de gênero e alterações sintáticas.
As mudanças litúrgicas encontram-se em grande número nos
lecionários. Seriam feitas pequenas alterações no início de uma passagem;
às vezes uma passagem grande era resumida só para uso no culto. Às vezes
uma mudança desse tipo passava a incorporar o próprio texto bíblico, como
foi o caso da "doxologia" na oração dominical (Mt 6.13). As mudanças
harmonizacionais aparecem com freqüência nos evangelhos, quando o
escriba tentou harmonizar um relato num documento com passagem
correspondente de outro documento (v. Lc 11.2-4 e Mt 6.9-13), ou em Atos
9.5,6, que se alterou a fim de ficar mais em acordo literal com Atos
26.14,15. Do mesmo modo, algumas citações do Antigo Testamento foram
ampliadas, em alguns documentos, para se harmonizarem com maior
precisão à LXX (cf. Mt 15.8 com Is 29.13, em que a expressão este povo foi
acrescentada). As mudanças históricas e factuais às vezes eram
introduzidas por escribas bem-intencionados. João 19.14 foi alterado em
alguns manuscritos, de modo que neles se lê hora "terceira" em vez de
"sexta", e Marcos 8.31, em que "depois de três dia" foi alterado para "no
terceiro dia", em alguns manuscritos. As mudanças sincréticas resultam da
combinação ou da mistura de duas ou mais variantes, de modo que se cria
um único texto, como provavelmente é o caso de Marcos 9.49 e Romanos
3.22.
As mudanças doutrinárias constituem a última categoria de
alterações propositais dos escribas. A maior parte das alterações
doutrinárias deliberadas foram introduzidas com vistas na ortodoxia, como
a referência à Trindade, em 1João 5.7,8. Outras alterações, ainda que
surgidas por causa das boas intenções, têm tido o efeito de acrescentar ao
texto algo que não fazia parte do ensino original naquela altura. Talvez seja
esse o caso da adição de "jejum" à palavra "oração" em Marcos 9.29, e do
chamado "final mais longo" desse mesmo evangelho (Mc 16.9-20).
Todavia, nem mesmo aqui o texto é herético. É importante que se ressalte,
nesta altura, que nenhuma doutrina cristã baseia-se num texto sob objeção,
e todo estudioso do Novo Testamento precisa estar consciente da
iniqüidade que é alterar um texto simplesmente com base em
considerações doutrinárias infundadas.
Quando se comparam os textos chamados variantes, do Novo
Testamento, com outros textos de outros livros que sobreviveram desde a
antigüidade, as conclusões são maravilhosas; pouco falta para que as
consideremos espantosas. Por exemplo, embora haja cerca de 200 000
"erros" nos manuscritos do Novo Testamento, eles só aparecem em cerca
de 10 000 trechos, e apenas cerca de uma sexagésima parte deles ergue-se
acima do nível das trivialidades. Westcott e Hort, Ezra Abbot, Philip Schaff
e A. T. Robertson avaliaram com o máximo cuidado as evidências e
chegaram à conclusão de que o texto do Novo Testamento tem pureza
superior a 99%. À luz do fato de haver mais de 5 000 manuscritos gregos,
cerca de 9 000 versões e traduções, as evidências da integridade do Novo
Testamento estão fora de questão.
Isso é válido sobretudo quando consideramos que alguns dos maiores
textos da antigüidade sobreviveram em apenas um punhado de manuscritos
(v. cap. 12). Quando se compara a natureza ou a qualidade desses escritos
com os manuscritos bíblicos, estes ficam em posição audaciosamente
saliente no que concerne à integridade. Bruce M. Metzger fez um excelente
estudo da Ilíada, de Homero, e da Mahãbhãrata da índia, em sua obra
Chapters in the history of New Testament textual criticism [Capítulos da
história da crítica textual do Novo Testamento]. Em seu estudo, o autor
demonstra que a corrupção textual desses livros sagrados é muito maior do
que a que acometeu o Novo Testamento. A Ilíada é particularmente cabível
para esse estudo, por ter tanta coisa em comum com o Novo Testamento.
Depois do Novo Testamento, a Ilíada é a obra que tem o maior número de
manuscritos disponíveis hoje, mais que qualquer outra obra (453 papiros, 2
unciais e 188 minúsculos, ou seja, 643 no total), À semelhança da Bíblia,
essa obra foi considerada sagrada, sofrendo mudanças textuais, e seus
manuscritos em grego também passaram pela crítica textual. Enquanto o
Novo Testamento apresenta cerca de 20 000 linhas, a Ilíada tem cerca de
15 000. Apenas 40 linhas (cerca de 400 palavras) do Novo Testamento
inspiram dúvidas, mas 764 linhas da Ilíada estão sob questionamento.
Portanto, 5% da Ilíada sofreram corrupção, contra menos de 1% do Novo
Testamento. O poema épico nacional da índia, Mahãbhârata, sofreu um
processo mais grave ainda de corrupção. É cerca de oito vezes maior que a
Ilíada e a Odisséia juntas, com cerca de 250 000 linhas. Dessas, cerca de
26 000 linhas estão corrompidas textualmente, i.e., pouco mais de 10%.
Assim é que o Novo Testamento não só sobreviveu em um número
maior de manuscritos, mais que qualquer outro livro da antigüidade, mas
sobreviveu em forma muito mais pura (99% de pureza) que qualquer outra
obra grandiosa, sagrada ou não. Até mesmo o Alcorão, que não é livro
antigo, pois originou-se no século VII d.C, sofreu o processo de
aparecimento de grande número de variantes que precisaram da revisão de
Orthman. De fato, ainda existem sete modos de ler o texto (vocalização e
pontuação), todas baseadas na revisão de Orthman, que se fez cerca de
vinte anos após a morte do próprio Maomé.
Os princípios da crítica textual
A apreciação completa da tarefa árdua de reconstruir o texto do Novo
Testamento a partir de milhares de manuscritos com dezenas de milhares
de variantes pode dar-se, em parte, pelo estudo de quantos críticos textuais
se engajaram nesse trabalho. Esses usaram dois tipos de evidências: as
externas e as internas.
Evidência externa
A evidência externa distribui-se em três variedades básicas:
cronológica, geográfica e genealógica. As evidências cronológicas dizem
respeito a data do tipo de texto, e não à data do próprio manuscrito. Os
tipos de texto mais antigos trazem textos que devem ser preferidos, em vez
de textos posteriores, mais recentes. A distribuição geográfica dos
testemunhos independentes em acordo entre si, no apoio a uma variante
devem ser preferidos aos testemunhos que têm proximidade ou
relacionamento maior. Os relacionamentos genealógicos entre os
manuscritos seguem o que foi tratado no capítulo 14. Das quatro famílias
textuais mais importantes, a alexandrina é considerada a família mais
confiável, ainda que às vezes apresente uma correção dos "estudiosos". Os
textos que contam com o apoio de bons representantes de dois ou mais
tipos de textos devem ter preferência sobre um único tipo de texto. O texto
bizantino em geral é considerado o mais pobre de todos. Quando os
manuscritos que se encaixam em determinado tipo de texto dividem-se no
apoio que dão a determinada variante, o verdadeiro texto provavelmente é
o dos manuscritos que em geral se mostram mais fiéis a seu próprio tipo de
texto, o texto que difere dos demais tipos de texto, o texto que é diferente
da família textual bizantina ou o texto que caracteriza melhor o tipo de
texto a que pertencem os manuscritos em questão.
Evidência interna
A evidência interna classifica-se em duas variedades básicas: a
transcripcional (que depende dos hábitos dos escribas) e a intrínseca (que
depende dos hábitos dos autores). A evidência transcripcional baseia-se em
quatro assertivas genéricas: o texto mais difícil (para o escriba) é
preferível, de modo especial se for sensato; o texto mais curto é preferível,
a menos que tenha surgido por omissão acidental de algumas linhas, em
razão de finais semelhantes ou de eliminação intencional; deve-se preferir
o texto verbalmente mais dissonante das passagens paralelas, ainda que
sejam citações do Antigo Testamento; e deve-se preferir a construção
gramatical, expressão ou termo menos refinados.
A evidência intrínseca depende da probabilidade daquilo que o autor
provavelmente escreveu. É determinada pelo estilo do autor ao longo do
livro (e em outras passagens), pelo contexto imediato da passagem, pela
harmonia do texto com o ensino do autor em outra passagem (bem como
com outros textos canônicos) e pela influência do contexto geral do autor.
Ao examinar todos os fatores internos e externos da crítica textual, é
essencial que se perceba que seu uso não é meramente uma aplicação da
ciência, mas também de uma arte delicada. Algumas observações podem
ajudar o iniciante a ficar familiarizado com o processo da crítica textual.
Em geral, a evidência externa é mais importante que a interna, visto ser
mais objetiva. As decisões devem levar em conta a evidência interna tanto
quanto a externa, na avaliação do texto, visto que nenhum manuscrito ou
tipo de texto contém todas as grafias corretas. Em algumas ocasiões,
diferentes estudiosos aparecerão com posições conflitantes entre si, à vista
dos elementos subjetivos da evidência interna.
Gleason Archer sugere, muito cautelosamente, as prioridades que
deveriam ser empregadas no caso de encontrar-se uma variante textual: 1)
deve-se preferir o texto mais antigo; 2) deve-se preferir o texto mais difícil;
3) deve-se preferir o texto mais curto; 4) deve-se preferir o texto que
explique melhor as variantes; 5) o apoio geográfico mais amplo dado a um
texto faz que ele seja o preferido; 6) deve-se preferir o texto que se
conforme melhor com o estilo e com o vocabulário do autor e 7) deve-se
preferir o texto que não dê sinais de desvio doutrinário.
A prática da crítica textual
O modo mais prático de observar os resultados dos princípios da
critica textual é comparar as diferenças entre a Versão autorizada do rei
Tiago (KJV) de 1611, baseada no texto recebido, e a Versão padrão
americana (ASV), de 1901, ou a Versão padrão revisada (RSV), de 1946 e
1952, que se baseiam no texto crítico. Uma pesquisa de várias passagens
servirá para ilustrar o procedimento usado para fazer a reconstituição do
verdadeiro texto.
Exemplos do Antigo Testamento
Deuteronômio 32.8 prove outro exercício interessante sobre a critica
textual do Antigo Testamento. O Texto massorético é acompanhado pelo
texto do rei Tiago (KJV) e pela ASV, ao dizer: "O Altíssimo distribuiu as
heranças às nações [...] determinou os limites dos povos, segundo o
número dos filhos de Israel". A RSV seguiu o texto da LXX: "de acordo com
o número dos filhos [ou anjos] de Deus". Um fragmento de Qumran dá
apoio ao texto da LXX. Segundo os princípios da crítica textual que
mostramos anteriormente, a RSV está correta porque 1) traz o texto mais
difícil, 2) tem o apoio do manuscrito mais novo que se conhece, 3) está em
harmonia com a descrição patriarcal de os anjos serem "filhos de Deus"
(cf. Jo 1-6, 2.1; 38.7 e possivelmente Gn 6.4) e 4) explica a origem da
outra variante.
Zacarias 12.10 ilustra a mesma questão. As versões KJV e ASV
seguem O Texto massorético: "Olharão para mim [o Iavé], a quem
trespassaram . A RSV segue a Versão teodosiana (c. 180 d.C; v. cap. 17) ao
traduzir: "Quando olharem aquele a quem trespassaram". O Texto
massorético preserva a redação preferida porque 1) baseia-se em
manuscritos mais antigos e melhores 2) é o texto mais difícil e 3) pode
explicar as demais redações com: base no preconceito teológico contra a
divindade de Cristo, ou pela influência da mudança ocorrida no Novo
Testamento da primeira para a terceira pessoa, na citação dessa passagem
(cf. Jo 19.37).
Outras variantes importantes entre o Texto massorético e a LXX
foram esclarecidas mediante a descoberta dos rolos do mar Morto; nesses
exemplos, tendem a dar apoio a LXX. Dentre tais passagens estão Hebreus
1.6 (KJV), que segue a citação de Deuteronômio 32.43 a famosa passagem
de Isaías 7.14 ("e será o seu nome Emanuel"), em vez da redação
massorética: "ela chamará seu nome". A Septuaginta traz uma versão de
Jeremias com 60 versículos a menos em relação ao Texto massorético, e o
fragmento de Qumran de Jeremias tende a apoiar o texto grego. Tais
ilustrações não devem ser tomadas como quadro uniforme dos rolos do
mar Morto, sempre dando apoio ao texto da Septuaginta, visto que não
existem muitas variantes do Texto massorético entre os manuscritos
encontrados nas grutas do mar Morto. Em geral os rolos tendem a
confirmar a integridade do Texto massorético. As passagens indicadas aqui
são meros exemplos dos problemas e dos princípios da crítica textual, no
exercício dos estudiosos de expurgar o texto do Antigo Testamento de
eventuais incorreções.
Exemplos do Novo Testamento
Marcos 16.9-20 (KJV) apresenta-nos o problema textual mais grave,
que nos deixa mais perplexos, dentre todos. Esses versículos estão ausentes
em muitos dos mais antigos e melhores manuscritos, como o X (Álefe), OB,
o itk (Antiga latina), a Siríaca sinaítica, muitos manuscritos armênios e
alguns etíopes. Muitos dos antigos pais da igreja não demonstram ter
conhecimento desse problema, e Jerônimo admitia que essa passagem
havia sido omitida em quase todas as cópias gregas. Dentre as cópias que
contêm esses versículos, algumas também trazem um asterisco ou óbelo, a
fim de indicar que se trata de adição espúria ao texto. Há ainda outro final
que ocorre em vários unciais, em alguns minúsculos e em cópias de
versões antigas. O longo final com que estamos tão familiarizados, vindo
da KJV e do texto recebido, encontra-se em grande número de unciais (c, D,
L, W e 8 [Theta], na maior parte dos minúsculos, na maior parte dos
manuscritos da Antiga latina, na Vulgata latina e em alguns manuscritos
siríacos e coptas. No Códice w, o final longo expande-se depois do
versículo 14.
A decisão sobre qual desses finais é o preferível ainda é
controvertida, visto que nenhum dos finais propostos eleva-se como se fora
o original, à vista das poucas evidências textuais, por causa do sabor
apócrifo e do estilo diferente do de Marcos perceptível em todos os finais.
Assim, se nenhum desses finais é autêntico, torna-se difícil crer que
Marcos 16.8 não é o final original. John W. Burgon fez uma defesa do
texto recebido (vv. 9-20) e, mais recentemente, M. van der Valk, ainda que
se admita que é muito difícil chegar a uma solução ou decisão sobre qual
final é o original de Marcos. Com base nas evidências textuais conhecidas,
parece mais plausível admitir que o final original do evangelho de Marcos
é o versículo 8.
João 7.53 — 8.11 (KJV) relata a história da mulher apanhada em
adultério. Está inserida entre parênteses na ASV, com uma nota que diz que
os manuscritos mais antigos omitem essa passagem. A RSV coloca a
passagem em questão entre parênteses, no final do evangelho de João, com
uma nota que diz que as antigas autoridades colocavam-na ali, ou depois de
Lucas 21.38. Não existe nenhuma evidência de que essa passagem faça
parte do evangelho de João porque 1) não está nos manuscritos gregos
mais antigos e melhores; 2) nem Taciano nem o texto da Antiga siríaca dão
sinais de tê-la conhecido, estando ausente também nos melhores
manuscritos da Siríaca peshita, nos da Copia, em vários da Gótica e da
Antiga latina; 3) nenhum autor grego faz referência a essa passagem senão
no século XII; 4) seu estilo — e interrupção— não se enquadram no
contexto do quarto evangelho; 5) aparece inicialmente no Códice Beza em
c. 550; 6) vários escribas colocam-na em outros lugares (e.g., depois de Jo
7.36; Jo 21.24; Jo 7.44 ou Lc 21.38) e 7) muitos manuscritos que incluem
essa passagem indicam haver dúvidas sobre sua integridade, marcando-a
com um óbelo. O resultado é que tal passagem pode ser preservada como
se fora uma história verdadeira, mas da perspectiva da crítica textual, deve
ser colocada como apêndice de João, com uma nota que diga que a
passagem não tem lugar determinado nos manuscritos antigos.
1 João 5.7 (KJV) está ausente na ASV e na RSV, sem explicações.
Todavia, existe uma explicação para essa omissão, a qual representa uma
historieta interessante sobre o processo da crítica textual. Quase não existe
apoio textual para a redação apresentada pela KJV, em nenhum documento
grego, ainda que haja apoio na Vulgata. Então, quando Erasmo foi
desafiado, e lhe perguntaram por que ele não incluíra essa passagem em
seu Novo Testamento grego, em 1516 e em 1519, o estudioso respondeu
rapidamente que a incluiria na próxima edição, desde que alguém lhe
mostrasse pelo menos um manuscrito antigo que lhe desse apoio.
Descobriu-se um minúsculo grego do século XVI, o manuscrito de 1520,
do frei franciscano Froy, ou Roy. Erasmo cumpriu sua promessa e incluiu
esse texto em sua edição de 1522. A KJV seguiu o texto grego de Erasmo e
assim foi: com base num único manuscrito tardio, insignificante,
desprezou-se todo o peso e autoridade de todos os demais manuscritos
gregos. Na verdade, a inclusão desse versículo como genuíno quebra quase
todos os cânones principais da crítica textual.
Com base nos casos acima estudados, deveria ficar claro que a crítica
textual é uma ciência e também uma arte. Não basta afirmar que a Bíblia é
o livro mais bem preservado, que sobreviveu desde os tempos antigos, mas
lembremo-nos também de que as variantes de certa importância
representam menos da metade de 1% de corrupção textual, e que nenhuma
dessas variantes influi em alguma doutrina básica do cristianismo. Além
disso, a crítica textual tem à sua disposição uma série de cânones que, para
todos os efeitos práticos, capacita os estudiosos bíblicos a recuperar de
modo completo o texto exato dos autógrafos hebraicos e gregos das
Escrituras — não só linha por linha, mas palavra por palavra.
16. Traduções e Bíblias aramaicas,
siríacas e afins
A transmissão da revelação da parte de Deus para nós gira em torno
de três desenvolvimentos históricos significativos: a invenção da escrita
antes de 3000 a.C; os inícios da tradução antes de 200 a.C; os
desenvolvimentos da imprensa antes de 1600 d.C. Já vimos antes a redação
e a cópia dos manuscritos originais da Bíblia, bem como o papel, o método
e as práticas da crítica textual na preservação do texto dos documentos
originais. Aqui dirigiremos a atenção à tradução da Palavra de Deus.
O presente capítulo será devotado ao estudo dos primeiros esforços
na tradução da Bíblia, e àqueles que por meio da língua empreenderam
esses esforços. Antes, todavia, de voltarmo-nos para essas traduções, é
preciso que entendamos com clareza certos termos técnicos da história da
tradução da Bíblia.
Definições e distinções
Há definições mais precisas de alguns termos básicos usados no
estudo da tradução da Bíblia, do que as definições usadas de modo geral. O
estudante cuidadoso da Bíblia deve evitar a confusão desses termos.
Definições
Tradução tradução literal e transliteração. Esses três termos estão
intimamente correlacionados. Tradução é simplesmente a transposição de
uma composição literária de uma língua para outra. Por exemplo, se a
Bíblia fosse transcrita dos originais hebraico e grego para o latim, ou do
latim para o português, chamaríamos esse trabalho tradução. Se esses
textos traduzidos fossem vertidos de volta para as línguas originais,
também chamaríamos isso tradução. A The new English Bible [Nova Bíblia
inglesa] (NEB) (1961,1970) é uma tradução. À tradução literal é uma
tentativa de expressar, com toda a fidelidade possível e o máximo de
exatidão, o sentido das palavras originais do texto que está sendo
traduzido. Trata-se de uma transcrição textual, palavra por palavra. O
resultado é um texto um tanto rígido. É o caso da obra Young's literal
translation of the Holy Bible [Tradução literal de Young da Bíblia Sagrada]
(1898). A transliteração é a versão das letras de um texto em certa língua
para as letras correspondentes de outra língua. É claro que uma tradução
literal da Bíblia fica sem sentido para uma pessoa de pouca cultura, diante
de um texto que lhe soa esquisito. No entanto, a transliteração de palavras
como "anjo", "batizar" e "evangelizar" foram introduzidas nas línguas
modernas.
Versão, revisão, versão revista e recensão. Esses termos têm estreito
relacionamento entre si. Tecnicamente falando, versão é uma tradução da
língua original (ou com consulta direta a ela) para outra língua, ainda que
comumente se negligencie essa distinção. O segredo para a compreensão é
que a versão envolve a língua original de determinado manuscrito. Para
todos os efeitos práticos, a NEB é uma versão, tomando-se essa palavra
nesse sentido. A The Rheims-Douay Bible (1582-1609) e a King James
version [Versão do rei Tiago] (KJV) (OU Authorized version, AV, 1611) não
foram traduzidas a partir das línguas originais. A Rheims-Douay foi
traduzida da Vulgata latina, que é tradução também, enquanto a KJV é a
quinta revisão da versão de Tyndale. No entanto, a Revised version [Versão
revisada] (RV OU ERV) (1881,1885), a The American standard version
[Versão padrão americana] (ASV) (1946, 1952) e a Revised standard
version [Versão padrão revisada] (RSV) (1946,1952) são versões no sentido
mais comum da palavra. Entenda-se, porém, que o fator crucial é este: uma
versão deve ser ó trabalho de traduzir um texto da língua original.
Revisão, ou versão revista, é termo usado para descrever certas
traduções, em geral feitas a partir das línguas originais, que foram
cuidadosa e sistematicamente revistas;, cujo texto foi examinado de forma
crítica, com vistas em corrigir erros ou introduzir emendas ou
substituições. A KJV é um exemplo de tal revisão, como também as
ediçfles da Bíblia chamadas Rheims-Douay-Challoner e RSV. A New
American standard Bible [Nova Bíblia americana padrão] (NASB)
(1963,1971) é o exemplo mais notável e recente de uma completa revisão
do texto bíblico.
Paráfrase e comentário. Paráfrase é uma tradução "livre" ou "solta"
O objetivo é que se traduza a idéia, e não as palavras. Daí que a paráfrase é
mais uma interpretação que uma tradução literal do texto. Na história da
tradução da Bíblia, esse tipo de texto tem sido muito popular. Na
antigüidade, ao redor do século VII, por exemplo, Cedmão fez paráfrases
da Criação. Entre as mais recentes paráfrases temos a obra de J. B. Phillips,
New Testament in modem English [Novo Testamento em inglês moderno]
A Bíblia na linguagem de hoje (BLH), da Sociedade Bíblica do Brasil e a
Bíblia viva de Kenneth Taylor.* O comentário é simplesmente uma
explicação das Escrituras. O exemplo mais antigo desse tipo de trabalho é
o Midrash ou comentário judaico do Antigo Testamento. Em anos recentes
têm surgido traduções da Bíblia conhecidas como "ampliadas"- elas
contêm comentários implícitos, às vezes explícitos, do texto, dentro da
própria" tradução. Bastam dois exemplos para ilustrar esse tipo de Bíblia: a
de Kenneth S. Wuest, Expanded translation of the New Testament
* Há em português as Cartas para hoje, tradução de Philllps das epístolas do Novo Testamento,
publicada por Edições Vida Nova. A Bíblia Viva é publicada em português pela Ed. Mundo Cristão.
(N. do E.).
[Tradução ampliada do Novo Testamento] (1956-1959), que usou os
mesmos princípios para as várias partes do discurso; a Lockman
Foundation tentou todos os esforços para traduzir a The amplified Bible [A
Bíblia ampliada] (1965), que seria também um comentário que emprega
travessões colchetes, parênteses e itálicos.
Distinções
Para que apreciemos de modo integral o papel desempenhado pelas
traduções da Bíblia, é importante que compreendamos que o próprio
processo de traduzi-la é indício da vitalidade de que a Bíblia goza no seio
do povo de Deus. Logo de início as traduções constituíram parte
fundamental da vida religiosa dos antigos judeus. Esses deram õ primeiro
passo a preceder todas as traduções posteriores. Na igreja primitiva, as
atividades missionárias eram acompanhadas por diversas traduções da
Bíblia outras línguas. Com o passar do tempo, surgiu mais uma fase na
história" da tradução da Bíblia, com o desenvolvimento da imprensa O
resultado foi que devemos fazer perfeita distinção entre as três categorias
genéricas de traduções da Bíblia: as traduções antigas, as medievais e as
modernas.
Antigas traduções da Bíblia. As traduções mais antigas continham
trechos do Antigo Testamento e às vezes também do Novo Apareceram
antes do período dos concílios da igreja (c. 350 d.C.), abarcando obras
como o Pentateuco samaritano, os Targuns aramaicos, o Talmude, o
Midrash e a Septuaginta (LXX). Logo após o período apostólico, essas
traduções antigas tiveram prosseguimento na versão de Áqüila, na revisão
de Símaco, nos Héxapla de Orígenes e nas versões siríacas do Antigo
Testamento. Antes do Concilio de Nicéia (325) surgiram traduções do
Novo Testamento para o aramaico e para o latim.
Traduções medievais da Bíblia. As traduções da Bíblia produzidas
durante a Idade Média em geral continham tanto o Antigo como o Novo
Testamento. Foram concluídas entre 350 e 1400. Durante esse período as
traduções da Bíblia eram dominadas pela Vulgata latina de Jerônimo (c.
340-420). A Vulgata constituiu a base tanto dos comentários como do
pensamento, por toda a Idade Média. Foi dela que surgiu a paráfrase de
Cedmão, a obra História eclesiástica, de Beda, o Venerável, e até mesmo a
tradução da Bíblia para o inglês, feita por Wycliffe. A Bíblia continuou a
ser traduzida para outras línguas durante esse período.
Traduções modernas. As traduções modernas surgiram a partir da
época de Wycliffe e de seus sucessores. Seguindo o exemplo de Wycliffe,
visto que foi ele o pai da primeira Bíblia completa em inglês, William
Tyndale (1492-1536) fez sua tradução diretamente das línguas originais,
em vez de usar a Vulgata latina como fonte. Desde essa época surgiu uma
multiplicidade incrível de traduções que continham o total ou apenas partes
do Antigo e às vezes também do Novo Testamento. Logo após o
desenvolvimento dos tipos móveis de Johann Gutenberg (c. 1454), a
história da transmissão, da tradução e da distribuição da Bíblia adentra uma
era inteiramente nova.
A tradução da Bíblia ajudou a manter o judaísmo puro, nos últimos
séculos antes de Cristo, como mostra nosso tratamento sobre o Pentateuco
samaritano e os Targuns. A tradução chamada Septuaginta (v. cap. 17) foi
feita em grego, em Alexandria, no Egito (iniciando-se entre 280-250 a.C), e
serviu de fundo às traduções para o latim e para outras línguas (v. cap. 18).
Essas traduções foram vitais para a evangelização, para a expansão e para o
estabelecimento da igreja. Desde a Reforma a disseminação da Bíblia vem
resultando em traduções em numerosas línguas. O papel desempenhado
pela Bíblia em inglês tem sido importantíssimo entre as modernas
traduções (v. caps. 19 e 20). Nosso debate seguirá essas linhas tópicas,
genéricas, iniciando-se com as traduções para o aramaico, para o siríaco e
outras que se lhes relacionam.
Traduções principais
As mais antigas traduções da Bíblia tinham o propósito duplo que
não pode ser subestimado: eram usadas a fim de disseminar a mensagem
dos autógrafos ao povo de Deus, e ajudá-lo na obrigação de manter a
religião pura. A proximidade dos autógrafos também indica sua
importância, visto que conduzem o estudioso da Bíblia de volta aos
primórdios dos documentos originais.
O Pentateuco samaritano
O Pentateuco samaritano pode ter-se originado no período de
Neemias, em que se reedificou Jerusalém. Não sendo na verdade uma
tradução, nem versão, mostra a necessidade do estudo cuidadoso para que
se chegue ao verdadeiro texto das Escrituras. Essa obra foi, de fato, uma
porção manuscrita do texto do próprio Pentateuco. Contém os cinco livros
de Moisés, tendo sido escrito num tipo paleo-hebraico, muito semelhante
ao que se encontrou na pedra moabita, na inscrição de Siloé, nas Cartas de
Laquis e em alguns manuscritos bíblicos mais antigos de Qumran. A
tradição textual do Pentateuco samaritano é independente do Texto
massorético. Não foi descoberto pelos estudiosos cristãos senão em 1616,
embora fosse conhecido dos pais da igreja, como Eusébio de Cesaréia e
Jerônimo, tendo sido publicado pela primeira vez na obra Poliglota de
Paris (1645) e, depois, na Poliglota de Londres (1657).
As raízes dos samaritanos podem ser encontradas na antigüidade, na
época de Davi. Durante o reinado de Onri (880-874 a.C.) a capital havia
sido estabelecida em Samaria (1Rs 16.24), e todo o Reino do Norte veio a
ser conhecido como Samaria. Em 732 a.C. os assírios, sob Tiglate-Pileser
III (745-727), conquistaram a parte nordeste de Israel e estabeleceram a
política de deportar os habitantes e importar outros povos cativos para
outras terras conquistadas. Sob Sargão II (em 721 a.C.) seguiu-se o mesmo
procedimento, quando esse rei conquistou o resto de Israel. A Assíria
impôs o casamento misto sobre os israelitas que não haviam sido
deportados, a fim de garantir que nenhuma revolta ocorresse, pois os povos
estariam automaticamente perdendo sua nacionalidade e absorvendo as
culturas de outros povos cativos (2Rs 17.24— 18.1). De início os colonos
adoravam deuses próprios. Quando os judeus voltaram do cativeiro
babilônico, ou um pouco depois disso, esses colonos aparentemente
desejaram seguir o Deus de Israel. Os judeus impediram que os
samaritanos fossem integrados, e estes, por sua vez, se opuseram à
restauração (v. Ed 4,2-6; Ne 5,11— 6;19). No entanto, por volta de 432
a.C, a filha de Sambalate com o neto do sumo sacerdote Eliasibe, O casal
misto foi expulso de Judá, e tal incidente provocou o fato histórico do
rompimento entre judeus e samaritanos (v. Ne 13.23-31).
A religião samaritana como sistema separado de adoração na verdade
data da expulsão do neto do sumo sacerdote, em cerca de 432 a.C. Por essa
época, um exemplar da Tora pode ter sido levado a Samaria e colocado no
templo que havia sido construído no monte Gerizim, em Siquém (Nablus),
onde se estabelecera um sacerdócio rival. Essa data no século v pode
explicar tanto o texto paleo-hebraico quanto a dupla categorização ou
divisão do Pentateuco samaritano em Lei e livros não-canônicos. Esse
apego samaritano à Tora e o isolamento desse povo, separado dos judeus,
resultou em que a Lei foi submetida a uma tradição textual à parte. O
manuscrito mais antigo do Pentateuco samaritano data de meados do
século XIV e trata-se de um fragmento de um pergaminho — o rolo
chamado Abisa. O códice do Pentateuco samaritano mais antigo traz uma
nota sobre ter sido vendido em 1149-1150 d.C, embora fosse muito mais
velho. A Biblioteca Pública de Nova Iorque abriga outro exemplar que data
de cerca de 1232. Imediatamente após a descoberta desse exemplar, em
1616, o Pentateuco samaritano foi aclamado como superior ao Texto
massorético. No entanto, depois de cuidadoso estudo, foi relegado a
posição inferior. Só recentemente esse documento reobteve um pouco de
sua antiga importância, ainda que seja considerado até hoje de menor
importância do que o texto massorético da lei. Os méritos do texto do
Pentateuco samaritano podem ser avaliados pelo fato de apresentar apenas
6 000 variantes em relação ao Texto massorético, e em sua maior parte
constituem diferenças ortográficas que se considerariam insignificantes. Há
ali a afirmativa de que o monte Gerizim é o centro de adoração, e não a
cidade de Jerusalém, com acréscimos aos relatos de Êxodo 20.2-17 e
Deuteronômio 5.6-21. Às vezes o Pentateuco samaritano e a Septuaginta
concordam a respeito de uma redação que, todavia, "é diferente do Texto
massorético; provavelmente isso se deva a que aqueles trazem o texto
original. No entanto, o Pentateuco samaritano reflete tendências culturais
na ambientação hebraica, como inserções sectárias, repetições das ordens
de Deus, impulsos no sentido de modernizar certas formas verbais antigas
e tentativas de simplificar as partes mais difíceis da redação hebraica.
Os targuns aramaicos
A origem dos targuns. Há evidências de que os escribas, já nos
tempos de Esdras (Ne 8.1-8), estavam escrevendo paráfrases das Escrituras
hebraicas em aramaico, Não estavam produzindo traduções, mas textos
explicativos da linguagem arcaica da Tora. As pessoas que realizavam esse
trabalho de produzir paráfrases eram chamados methurgeman;
desempenhavam papel importante na comunicação da palavra de Deus em
língua hebraica (que aos ouvidos samaritanos soava tão exótica), na língua
do dia-a-dia que o povo entendia bem. Antes do nascimento de Cristo,
quase todos os livros do Antigo Testamento tinham suas paráfrases ou
interpretações (targuns). Ao longo dos séculos seguintes o targum foi sendo
redigido até surgir um texto oficial.
Os mais antigos targuns aramaicos provavelmente foram escritos na
Palestina, durante o século II d.C, embora haja evidências de alguns textos
aramaicos de um período pré-cristão. Esses textos primitivos, oficiais, do
targum, continham a lei e os profetas, embora targuns de épocas
posteriores também incluíssem outros escritos do Antigo Testamento.
Vários targuns não-oficiais, em aramaico, foram encontrados nas cavernas
de Qumran, cujos textos seriam substituídos pelos textos oficiais do século
II d.C. Durante o século III, todos os exemplares do Targum palestino
oficial, abrangendo a lei e os profetas, foram praticamente engolidos por
outra família de paráfrases dos textos bíblicos, chamadas Targuns
aramaico-babilônicos. As cópias do targum que contivessem os demais
escritos sagrados, além da lei e dos profetas, continuavam a ser feitas
extra-oficialmente.
Os targuns que mais se destacaram. Durante o século III d.C, surgiu
na Babilônia um targum aramaico sobre a Tora. Possivelmente se tratasse
de uma versão corrigida de texto palestino antigo; mas também poderia terse
originado na Babilônia, tendo sido tradicionalmente atribuído a
Onquelos (Ongelos), ainda que tal nome provavelmente resultasse de
confusão com Áqüila (v. cap. 17).
O Targum de Jônatas ben Uzziel é outro targum babilônico em
aramaico, que acompanhava os profetas (os primeiros e os últimos). Data
do século IV, sendo uma tradução mais livre do texto que a tradução de
Onquelos. Esses targuns eram lidos nas sinagogas: o texto de Onquelos ao
lado da Tora, que se liam em sua inteireza; Jônatas era lido ao lado de
seleções dos profetas (haphtaroth, pl.). Visto que as demais partes do
Antigo Testamento (escritos) não eram lidas nas sinagogas, não se
produziu nenhum targum oficial, mas havia cópias não-oficiais usadas
pelas pessoas de modo particular. Pelos meados do século VII surgiu o
Targum do pseudo-Jônatas, sobre o Pentateuco. Trata-se de uma mistura
do Targum de Onquelos e alguns textos do Midrash. Outro targum
apareceu ao redor do ano 700, o Targum de Jerusalém, do qual sobreviveu
apenas um fragmento. Nenhum desses targuns é importante sob o aspecto
do texto, mas todos provêem informações importantes para o estudo da
hermenêutica, visto que indicam a maneira por que as Escrituras eram
interpretadas pelos estudiosos rabínicos.
O Talmude e o Midrash
Surgiu um segundo período na tradição dos escribas do Antigo
Testamento, entre 100 e 500 d.C., conhecido como o período talmúdico. O
Talmude (lit., instrução) desenvolveu-se como um corpo da lei civil e
canônica hebraica, com base na Tora. O Talmude basicamente representa
as opiniões e as decisões de professores judeus de cerca de 300 a 500 d.C,
consistindo em duas principais divisões: o Midrash e a Gemara. A Mishna
(repetição, explicação) completou-se perto de 200 d.C, como se fora um
digesto hebraico de todas as leis orais, desde o tempo de Moisés. Era
altamente considerada como a segunda lei, sendo a Tora a primeira. A
Gemara (término, finalização) era um comentário ampliado, em aramaico,
da Mishna. Foi transmitida em duas tradições: a Gemara palestina (c. 200)
e a Gemara babilônica, maior, dotada de mais autoridade (c. 500).
O Midrash (lit., estudo textual) na verdade era uma exposição
formal, doutrinária e homilética das Sagradas Escrituras, redigida em
hebraico ou em aramaico. De mais ou menos 100 até 300 d.C, esses
escritos foram reunidos num corpo textual a que se deu o nome de Halaka
(procedimento), que era uma expansão adicional da Tora, e Hagada
(declaração, explicação), ou comentários de todo o Antigo Testamento. O
Midrash de fato diferia do Targum neste ponto: o Midrash eram
comentários, em vez de paráfrases. O Midrash contém algumas das mais
antigas homilias do Antigo Testamento, bem como alguns provérbios e
parábolas, textos usados nas sinagogas.
Traduções siríacas
A língua siríaca (aramaico) de algumas partes do Antigo Testamento
e até mesmo de alguns manuscritos do Novo Testamento, era comparável
ao grego coiné e ao latim da Vulgata. O aramaico era a língua comum do
povo nas ruas. Visto que os judeus da época do Senhor Jesus sem dúvida
alguma falavam o aramaico, a língua daquela região toda, é razoável
presumir que os judeus que moravam na vizinha Síria também falassem
esse idioma. Por sinal, Josefo relata que os judeus do século I faziam
proselitismo nas áreas a leste da antiga Nínive, perto de Arbela. Seguindo o
exemplo deles, os primeiros cristãos partiram para a mesma área
geográfica e prosseguiram até a Ásia Central, a índia e a China. A língua
básica desse grande ramo do cristianismo era o siríaco, ou o que F. F.
Bruce chamava "aramaico cristão". Uma vez que a igreja começou a
mover-se, saindo da Síria, desenvolvendo seus esforços missionários,
tornou-se premente a necessidade de uma versão da Bíblia especial para
essa região.
Siríaca peshita. A Bíblia traduzida para o siríaco era comparável à
Vulgata latina. Era conhecida como Peshita (lit., simples), O texto do
Antigo Testamento da Peshita deriva de um texto surgido em meados do
século II ou início do III, embora a designação Peshita date do século IX.
É provável que o Antigo Testamento houvesse sido traduzido do hebraico,
mas recebeu revisão a fim de conformar-se com a LXX. A Peshita segue o
Texto massorético, supre excelente apoio textual, mas não é tão confiável,
como testemunha independente do texto genuíno do Antigo Testamento.
Acredita-se que a edição padrão do Novo Testamento siríaco derive
de uma revisão datada do século v, feita por Rabbula, bispo de Edessa
(411-435). Sua revisão de fato se fez em manuscritos que continham
versões siríacas, cujo texto foi alterado para aproximar-se mais dos
manuscritos gregos que na época eram usados em Constantinopla
(Bizâncio). Essa edição do Novo Testamento siríaco, mais a revisão cristã
feita no Antigo Testamento siríaco, viria a ser conhecida como Peshita. Em
obediência à ordem de Rabbula, segundo a qual um exemplar de sua
revisão fosse colocado em cada igreja de sua diocese, a Peshita obteve
ampla circulação de meados do século v até seu final. Em decorrência de
sua atuação, a versão Peshita veio a tornar-se a versão autorizada dos dois
ramos principais do cristianismo siríaco, os nestorianos e os jacobitas.
Versão siro-hexaplárica. O texto siro-hexaplárico do Antigo
Testamento era uma tradução siríaca que ocupava a quinta coluna das
páginas da obra de Orígenes intitulada Héxapla (v. cap. 17). Embora fosse
traduzida por volta de 616 por Paulo, bispo de Tela, essa obra na verdade
jamais criou raízes nas igrejas siríacas. Isso aconteceu em parte por causa
da tradução fortemente literal do texto grego, em violação ao idioma
siríaco. Esse caráter literal da tradução fez que o texto siro-hexaplárico se
tornasse ferramenta muito útil para determinar o texto correto dos Héxapla.
Alguns trechos desse manuscrito sobreviveram no Códice mediolanense,
que consiste em 2 Reis, Isaías, os Doze, Lamentações e os livros poéticos
(exceto Salmos). O Pentateuco mais os livros históricos sobreviveram até
cerca de 1574, mas depois desapareceram. À semelhança da Peshita, o
texto dessa versão é basicamente bizantino.
Diatessaron de Taciano (c. 170). Taciano foi um cristão assírio,
discípulo de Justino Mártir em Roma. Depois da morte de seu mentor,
Taciano voltou a seu país de origem e produziu uma harmonia dos
evangelhos; à base de "tesoura e cola", denominada Diatessaron (lit.,
através dos quatro). A obra de Taciano é conhecida principalmente
mediante referências indiretas, mas havia sido amplamente utilizada e
popularizada, até ser abolida por Rabbula e Teodoreto, bispo de Cirro, em
423, pelo fato de Taciano ter pertencido à seita herética dos encratitas. A
obra de Taciano tornou-se tão popular que Efraim, pai sírio da igreja,
escreveu um comentário sobre ela, antes que Teodoreto conseguisse que
todas as cópias (cerca de cem) fossem destruídas. Para substituir o
Diatessaron, Teodoreto apresentou outra tradução dos Evangelhos dos
Quatro Evangelistas.
Visto que o Diatessaron não sobreviveu, é impossível saber se
originariamente havia sido escrito em siríaco ou, mais provavelmente, em
grego e, depois, traduzido para o siríaco. O comentário de Efraim sobre o
Diatessaron foi escrito em siríaco, mas também se perdeu. Uma tradução
armênia do comentário sobreviveu, no entanto, assim como duas versões
arábicas do Diatessaron. Ainda que a obra original do Diatessaron fosse
calcada fortemente no Novo Testamento, e pudesse suportar a crítica
textual, constitui testemunho secundário, a partir de uma tradução e do
comentário traduzido, e acrescentaria pequeno peso ao texto original dos
evangelhos. Observa-se, contudo, um fato: o Diatessaron recebeu
influência de textos do Novo Testamento, tanto do Oriente como do
Ocidente.
Manuscritos da Antiga siríaca. O Diatessaron não foi a única forma
de textos dos evangelhos usada pelas igrejas siríacas. Entre os estudiosos
havia a tendência de mantê-los separados, e lê-los separadamente. Até
mesmo antes da época de Taciano, escritores como Hegésipo mencionaram
outra versão siríaca da Bíblia. Esse texto dos evangelhos em siríaco antigo
era típico do texto ocidental, tendo sobrevivido em dois manuscritos. O
primeiro deles é um pergaminho conhecido como Siríaca curetoniana; o
segundo é um palimpsesto conhecido como Siríaca sinaítica. Esses
documentos eram chamados "Os Separados", pelo fato de virem tramados
entre si, à feição do Diatessaron de Taciano. Embora haja diferenças entre
os dois textos, ambos refletem a mesma versão de um texto que data de
fins do século II, ou início do III. Nenhum texto do resto do Novo
Testamento em siríaco antigo sobreviveu até nossos dias, embora tenham
sido reconstituídos com base em citações nos escritos dos pais da igreja
oriental.
Outras versões siríacas. Três outras versões siríacas requerem um
comentário especial, ainda que reflitam textos que surgiram depois
daqueles de que já tratamos. Em 508 completou-se mais um Novo
Testamento siríaco, que incluía os livros omitidos pela Peshita (2 Pedro, 2
João, 3 João, Judas e Apocalipse). Na verdade, o trabalho era uma revisão
da Bíblia toda feita pelo bispo Policarpo, sob a direção de Zenaia
(Filoxeno), bispo jacobita de Mabugue, situada a leste da Síria. À tradução
Siríaca filoxeniana revela que a igreja siríaca não aceitara o cânon do
Novo Testamento como um todo até o século VI. Em 616, outro bispo de
Mabugue, Tomás de Heracléia, reeditou o texto filoxeniano, ao qual
adicionou algumas notas marginais ou o revisou completamente, num
estilo bem mais literal. Essa revisão ficou conhecida como a versão Siríaca
heracleana, embora a parte do Antigo Testamento tenha sido feita por
Paulo de Tela, como informamos anteriormente. O comentário crítico do
livro de Atos da heracleana é o segundo documento mais importante que
traz o texto ocidental; só é ultrapassado em importância pelo Códice Beza.
A terceira versão siríaca é conhecida como Siríaca palestinense. Não existe
versão completa do Novo Testamento relacionada à Siríaca palestinense. É
provável que seu texto date do século v e sobreviveu em fragmentos
apenas, em sua maior parte oriundos de lecionários dos evangelhos que
datam dos séculos XI e XII.
Traduções secundárias
Ainda que o Pentateuco samaritano, o Talmude e os mais antigos
manuscritos do Midrash houvessem sido escritos em paleo-hebraico, com
caracteres hebraicos, e, por isso, nem chegam a qualificar-se como
traduções, provêem todavia uma base para os trabalhos posteriores de
tradução, pois fazem que as Escrituras fiquem disponíveis ao povo de
Deus. Os targuns aramaicos e as várias traduções siríacas da Bíblia
reforçaram mais ainda essa tendência, ao colocá-las nas línguas básicas dos
judeus e dos cristãos primitivos. A partir dessas versões básicas surgiram
várias traduções secundárias. Tais traduções secundárias têm pouco mérito
textual, mas dão indicação da vitalidade básica das missões cristãs e do
desejo dos novos crentes de terem a Palavra de Deus em suas próprias
línguas.
Traduções nestorianas. Quando os nestorianos foram condenados no
Concilio de Éfeso (431), seu fundador, Nestório (m. c. 451), foi colocado
num mosteiro, como parte de um compromisso que levou muitos de seus
seguidores a aderir a seus adversários. No entanto, os nestorianos persas
separaram-se e fundaram uma igreja cismática. Espalharam-se pela Ásia
Central e até o extremo leste da Ásia, traduzindo a Bíblia para várias
línguas à medida que se iam deslocando. Dentre essas traduções estão as
chamadas versões sogdianas. São versões baseadas nas Escrituras siríacas e
não nos textos hebraicos e gregos. Só pequenos fragmentos dessa obra
permaneceram, e todos do século IX em diante. Nenhum desses textos,
todavia, é significativo, visto serem traduções de uma tradução. A
devastadora ação de Tamerlane, "o chicote da Ásia", quase exterminou os
nestorianos sua herança, perto do final do século IV.
Traduções arábicas. Depois do surgimento do islamismo (após a
Hégira, ou fuga de Maomé em 622 d.C), a Bíblia foi traduzida para o
árabe, a partir do grego, do siríaco, do copta, do latim e de várias
combinações desses idiomas. A mais antiga das várias traduções arábicas
aparentemente derivou-se do siríaco, talvez da Antiga siríaca, mais ou
menos na época em que o islamismo surgiu como potência considerável na
história (c. 720). Maomé (570-632), fundador do islamismo, só conhecia a
história do evangelho mediante a tradição oral, e assim mesmo com base
em fontes siríacas. A única tradução padronizada do Antigo Testamento
para o árabe é a que foi feita por um estudioso judeu, Saadia Gaon (c. 930).
À semelhança das traduções nestorianas, as traduções arábicas abrangem
desde o século IX até o XIII. As traduções arábicas, com exceção do
Antigo Testamento, baseiam-se em traduções e não nas línguas originais,
pelo que oferecem pouca ajuda à crítica textual, se é que podem ajudar em
alguma coisa.
Traduções para o antigo persa. Duas traduções dos evangelhos para
o persa antigo são conhecidas, mas basearam-se em textos siríacos do
século XIV e num texto grego posterior. Esse apresenta alguma
semelhança com o texto cesareense, mas apresenta pouco valor quanto à
crítica textual.
17. Traduções gregas e afins
Durante as campanhas de Alexandre, o Grande, os judeus foram alvo
de considerável favor. À medida que ele avançava em suas conquistas, ia
estabelecendo centros de populações e de administradores que cuidassem
dos novos territórios que ia conquistando. Muitas dessas cidades receberam
o nome de Alexandria, transformando-se em centros de cultura, em que os
judeus recebiam tratamento preferencial. Assim como os judeus haviam
abandonado sua língua materna, o hebraico, trocando-a pelo aramaico, no
Oriente Próximo, abandonaram o aramaico a favor do grego, em cidades
grandes como Alexandria, no Egito.
Logo após a morte de Alexandre, em 323 a.C, seu Império foi
dividido pelos seus generais em várias dinastias. Os ptolomeus ficaram
com o controle do Egito, os selêucidas dominaram a Ásia Menor, os
antigonidas ficaram com a Macedônia e surgiram, então, vários reinos de
menor importância. No que diz respeito à Bíblia, a dinastia do Egito, sob
os ptolomeus, é de importância primordial. Essa dinastia recebeu seu nome
de Ptolomeu I Sóter, filho de Lago, governador de 323 a 305 e rei de então
até sua morte, em 285. Foi sucedido por seu filho Ptolomeu II Filadelfo
(285-246), que se casou com a irmã, Arsínoe, seguindo o costume dos
faraós.
Durante o reinado de Ptolomeu II Filadelfo, os judeus receberam
privilégios políticos e religiosos totais. Também foi durante esse tempo que
o Egito passou por um tremendo programa cultural e educacional, sob o
patrocínio de Arsínoe. Nesse programa inclui-se a fundação do museu de
Alexandria e a tradução das grandes obras para o grego. Entre as obras que
começaram a ser traduzidas para o grego, nessa época, estava o Antigo
Testamento hebraico. De fato, era a primeira vez que o Antigo Testamento
estava sendo traduzido para outra língua, como dissemos no capítulo 16.
Nosso tratamento agora gira em torno dessa tradução e de outras que a ela
se relacionam.
A Septuaginta (LXX)
Os líderes do judaísmo em Alexandria produziram uma versão
modelar do Antigo Testamento em língua grega conhecida pelo nome de
Septuaginta (LXX), palavra grega que significa setenta. Embora esse termo
se aplique estritamente ao Pentateuco, que foi o único trecho da Bíblia
hebraica que se traduziu totalmente durante o tempo de Ptolomeu n
Filadelfo, essa palavra viria a denotar a tradução para o grego de todo o
Antigo Testamento. A própria comunidade judaica mais tarde perdeu o
interesse de preservar a sua versão grega, quando os cristãos começaram a
usá-la extensivamente como seu Antigo Testamento. Exclusão feita ao
Pentateuco, o resto do Antigo Testamento provavelmente foi traduzido
durante os séculos II e III a.C. É certo que se tenha concluído antes de 150
a.C, porque a obra é discutida numa carta de Aristéias a Filócrates (c. 130-
100 a.C).
Essa carta de Aristéias relata como o bibliotecário de Alexandria
persuadiu Ptolomeu a traduzir a Tora para o grego, para uso dos judeus
dessa cidade. E prossegue dizendo que seis tradutores de cada uma das
doze tribos foram selecionados, terminando o trabalho em apenas 72 dias.
Embora as minúcias desse acontecimento sejam pura ficção, pelo menos
mostram que a tradução da Septuaginta para uso dos judeus alexandrinos é
confiável.
A qualidade da tradução dos Setenta não é a mesma, uniformemente,
em toda a obra, o que nos leva a várias observações básicas. Primeira: a
LXX abrange desde transliterações literais, servis, da Tora, a traduções
livres do texto hebraico. Segunda: deve ter havido um propósito em vista,
para a produção da LXX, diferente dos propósitos da Bíblia hebraica; esta,
por exemplo, servia para leituras públicas nas sinagogas, enquanto a LXX
apenas representaria uma obra especializada dos escribas. Terceira: a LXX
foi um esforço pioneiro na tradução do texto do Antigo Testamento, e um
excelente exemplo de tal empreendimento. Finalmente, a LXX de modo
geral é fiel ao texto do Antigo Testamento hebraico, como dissemos no
capítulo 12.
No entanto há uma questão grave no que concerne à Septuaginta; há
passagens em que ela difere do Texto massorético; e outras em que os rolos
do mar Morto concordam com a Septuaginta, em oposição ao texto
hebraico. Podem-se indicar várias passagens que sublinham essa
constatação, como Deuteronômio 32.8, Êxodo 1.5, Isaias 7.14, Hebreus
1.6(KJV), que cita Deuteronômio 32.43. Além disso, os rolos do mar
Morto também contém alguns dos livros e textos apócrifos do Antigo
Testamento, como o salmo 151, só conhecidos mediante a LXX.A partir das
evidências dessas variantes de vários textos, podemos observar três
tradições básicas do Antigo Testamento: a massorética, a samaritana
(v.cap.16) e a grega (LXX). Em geral o Texto massorético é o melhor, mas
em várias" passagens a LXX O supera. O Pentateuco samaritano reflete
diferenças sectárias e culturais em relação ao texto hebraico, e a LXX é uma
tradução não um texto original. No entanto, quando ambos concordam
entre si, contra o Texto massorético, é provável que reflitam o texto
original.
É preciso lembrar todavia, que a LXX em geral é fiel ao Texto
massorético como também são fieis os rolos do mar Morto. Uma
comparação das variantes num dado capítulo da Bíblia pode ilustrar isso.
Em Isaías 53, e.g., temos 166 palavras, e entram em questão somente 17
letras. Dez dessas letras são simples questões de grafia, não influindo de
modo algum no sentido da passagem. Outras quatro letras são o resultado
de mudanças estilísticas de pouca monta, como conjunções acrescentadas
pelos escribas. As três letras remanescentes compreendem uma única
palavra, “luz”, que se acrescenta ao versículo 11 sem influir muito no
sentido. Essa palavra tem o apoio da LXX e do rolo do mar Morto IA Isb?
Esse exemplo e típico do manuscrito integral de Isaías A. Ele força o leitor
a observar a confiabilidade do texto do Antigo Testamento de tal modo que
reconheça que nem mesmo todas as variantes conseguem mudar nossa
compreensão do ensino religioso da Bíblia.
Graças a essa qualidade, a importância da LXX é facilmente
observável Ela serviu de ponte religiosa sobre o abismo existente entre os
judeus (de língua hebraica) e os demais povos (de língua grega), uma vez
que atendia as necessidades;dos judeus de Alexandria. A LXX serviu
também para cobrir o lapso histórico que separava os judeus do Antigo
Testamento dos judeus e dos cristãos de língua grega que adotaram a LXX
como seu Antigo Testamento, usando-a ao lado do Novo Testamento. Além
disso, a LXX representou um precedente importante para os missionários e
para os estudiosos cristãos para que produzissem traduções de toda a Bíblia
em varias línguas e dialetos. Sob o aspecto textual, a LXX elimina o vazio
que separava o Antigo Testamento hebraico dos grandes códices da igreja
,a (Àlefe, A, B, C e outros). Ainda que a LXX não reflita a excelência do
texto hebraico, pelo menos demonstra sua pureza.
Outras versões gregas
A crítica judaica durante os primeiros séculos do cristianismo
resultou numa reação dos judeus contra a Septuaginta. Tal reação judaica
produziu nova onda de traduções do Antigo Testamento, como a tradução
grega conhecida como versão de Áqüila e mais uma, conhecida como
versão de Símaco; e chegou até a provocar o surgimento de uma grande
obra de crítica textual em meados do século III, os Héxapla, de Orígenes.
Todas essas obras desempenham papel importante no estudo da crítica
textual, visto estarem mais próximas dos autógrafos do que muitas cópias
de manuscritos hebraicos ainda existentes.
F. F. Bruce acredita que há duas grandes razões pelas quais os judeus
rejeitaram a LXX nos primeiros séculos da igreja. Primeiramente, a LXX
havia sido adotada pelos cristãos como seu Antigo Testamento, e usavamna
livremente na propagação e na defesa da fé cristã. Em segundo lugar, foi
criada ao redor do ano 100 d.C. uma edição revista do texto modelar
hebraico. De início continha o Pentateuco e mais tarde passou a incorporar
o resto do Antigo Testamento. O resultado dessa revisão foi o
estabelecimento do Texto massorético. Por não existir um texto básico
aceitável tanto por cristãos como por judeus, os estudiosos judeus
decidiram corrigir a situação fazendo novas traduções gregas de suas
Escrituras hebraicas.
A versão de Áqüila (c. 130-150 d.C). Fez-se uma nova tradução do
Antigo Testamento para os judeus de língua grega, durante a primeira
metade do segundo II. Quem a empreendeu foi Áqüila, que, segundo se
diz, teria sido parente do imperador Adriano, tendo mudado de Sinope para
Jerusalém como funcionário público. Estando em Jerusalém, Áqüila
converteu-se ao cristianismo, mas viu-se incapaz de libertar-se de suas
idéias e hábitos pré-cristãos. Foi repreendido em público pelos presbíteros
da igreja, ficou ofendido e abandonou o cristianismo, tornando-se adepto
do judaísmo. Como prosélito judeu, teve como mestre o famoso rabi
Aquiba, e traduziu o Antigo Testamento para o grego.
Grande parte dessa história sem dúvida foi inventada, mas Áqüila
provavelmente foi um prosélito judeu da região do mar Negro, homem de
grande prestígio durante a primeira metade do século II. Ele produziu uma
nova tradução para o grego, do Antigo Testamento, a partir do texto
hebraico. Esse é o Áqüila erroneamente associado ao Targum de Onquelos,
como mencionamos no capítulo 16. A versão do Antigo Testamento feita
por Áqüila é obra servil, rigidamente acorrentada ao texto hebraico. Ainda
que usasse palavras gregas, o padrão de pensamento as estruturas de
linguagem prendem-se às regras hebraicas de composição. No entanto, o
texto de Áqüila veio a tornar-se a versão grega oficial do Antigo
Testamento usado pelos judeus não-cristãos. A obra sobreviveu apenas em
fragmentos e citações.
A revisão de Teodócio (c. 150-185). O próximo trabalho importante
de tradução do Antigo Testamento para o grego é atribuído a Teodócio. Há
controvérsia quanto ao exato lugar e data em que ele executou seu
trabalho; parece que foi uma revisão de uma versão grega anterior: ou a
LXX, talvez a de Áqüila, ou possivelmente outra versão grega qualquer. A
opinião mais factível é que Teodócio, natural de Éfeso, é quem teria
realizado a obra; esse autor teria sido prosélito judeu ou cristão ebionita.
Sua revisão é mais livre do que a versão de Áqüila e, em algumas
passagens, substitui algumas das expressões antigas da LXX. A tradução
que Teodócio fez de Daniel logo substituiu a versão da LXX entre os
cristãos, e alguns dos primitivos catálogos das Escrituras. Sua tradução de
Esdras-Neemias teria substituído a que se encontra na LXX.
A revisão de Símaco (c. 185-200). Símaco aparentemente seguiu a
Teodócio tanto no tempo como no engajamento teológico, embora alguns
datem seu trabalho antes do de Teodócio. Jerônimo acreditava que Símaco
era um cristão ebionita, mas Epifânio afirma que ele era um samaritano
convertido ao judaísmo. Para nossos propósitos, esse desacordo não faz
grande diferença, visto que o objetivo do trabalho de Símaco era produzir
uma tradução idiomática do texto para o grego. O resultado é que Símaco
ocupa o lugar oposto ao de Áqüila como tradutor. Ele estava preocupado
com o sentido de sua tradução, e não com a exatidão do texto. Tendo isso
em mira, no entanto, devemos notar que Símaco mostrou elevados padrões
de exatidão que exerceram profunda influência sobre os tradutores da
Bíblia que viriam mais tarde. Ele foi capaz de transformar expressões
hebraicas em expressões gregas excelentes, perfeitamente idiomáticas, o
que coloca Símaco muito perto de qualquer tradutor de hoje, segundo o
conceito moderno dos deveres de um tradutor. Curiosamente, Símaco
exerceu maior influência sobre a Bíblia latina do que sobre as traduções
gregas posteriores, visto que Jerônimo fez uso considerável desse autor
enquanto esteve compondo sua Vulgata.
Os Héxapla de Orígenes (c. 240-250). As traduções da Bíblia
hebraica para o grego resultaram nas quatro traduções textuais diferentes,
por volta do início do século III d.C: a LXX, a versão de Áqüila e as
revisões de Teodócio e de Símaco. Essa situação tumultuada abriu espaço
para a primeira tentativa realmente válida e de realce para a crítica textual.
Esse trabalho foi empreendido por Orígenes de Alexandria (185-254). Por
causa das muitas divergências existentes entre os vários manuscritos da
LXX, das discrepâncias existentes entre o texto hebraico e o da LXX e das
várias tentativas de revisar as traduções gregas, Orígenes aparentemente
decidiu apresentar um texto grego satisfatório do Antigo Testamento para o
mundo cristão. Por conseguinte, seu trabalho foi essencialmente uma
revisão, em vez de versão, pois corrigiu as corrupções textuais e tentou
unificar os textos hebraicos e gregos. Ele tinha um objetivo duplo: mostrar
a superioridade das várias revisões do Antigo Testamento sobre o texto
corrompido da LXX e prover uma visão comparativa dos textos hebraicos
corretos, contra os textos divergentes da LXX. Ele seguia a idéia de que o
Antigo Testamento hebraico era na verdade uma "transcrição inerrante" da
verdade revelada ao homem.
Os Héxapla (compostos de seis partes) dividiam-se em seis colunas
paralelas. Cada coluna continha uma versão particular do Antigo
Testamento, o que fazia que a obra fosse sumamente volumosa. Na
primeira coluna, Orígenes colocou o texto hebraico. Na segunda coluna
vinha uma transliteração grega do texto hebraico. A tradução literal de
Áqüila aparecia na terceira coluna, com a revisão idiomática de Símaco na
quarta coluna. Orígenes colocou sua própria revisão da LXX na quinta
coluna, e acrescentou a revisão de Teodócio na sexta coluna.
Em seus Héxapla dos Salmos, Orígenes acrescentou outras três
colunas, mas em só duas delas inscreveu traduções diferentes. Ele também
produziu um trabalho separado chamado Tétrapla, que eram os próprios
Héxapla em que ele omitiu as colunas número um e dois. A tremenda obra
de Orígenes não sobreviveu às agruras do passar do tempo, embora
Eusébio e Panfílio publicassem a quinta coluna (a tradução feita pelo
próprio Orígenes da LXX) com adições. Essa obra sobreviveu no Códice
sarraviano (G) do século IV ou V, que contém trechos de Gênesis a Juizes.
Trata-se da única edição grega de alguma importância, a qual se preservou,
embora haja uma versão siríaca dos Héxapla que data do século VII, e
alguns manuscritos individuais que também sobreviveram.
A realização grandiosa de Orígenes pode ser avaliada pelo que tem
sido descoberto e revelado a respeito de suas técnicas voltadas para a
crítica textual. Ele descobriu muitas corrupções, omissões, adições e
transposições nas cópias da LXX de sua época. Muitas dessas descobertas
foram feitas quando se compararam as várias revisões do Antigo
Testamento grego, mas Orígenes estava preocupado primordialmente em
fazer que os textos da LXX ficassem em maior harmonia com o texto
hebraico da primeira coluna de seus Hixapla. Ele desenvolveu um sistema
bem elaborado de marcações críticas a fim de revelar os problemas
encontrados, ao chegar até sua própria tradução na quinta coluna. Isso
possibilitava ao leitor ver as corruptelas que Orígenes havia corrigido, as
omissões e as adições que ele havia feito e os lugares em que certas
palavras haviam sido transpostas entre os vários textos gregos.
Orígenes usava um óbelo (— ), ou traço horizontal, a fim de indicar
que certa palavra ou expressão aparecia na LXX, mas não existia no texto
hebraico original. Quando certa expressão constava do texto hebraico, mas
havia sido omitida na LXX, Orígenes a acrescentava, conforme a revisão de
Teodócio, e marcava seu início com um asterisco (x ou +). Ele indicava o
final dessas correções com o metóbelo (y). Quando transcrevia passagens
curtas, Orígenes as colocava no mesmo lugar em que apareciam na LXX, e
indicava-as com uma combinação asterisco-óbelo (x ou — ) no início e um
metóbelo no final. Nas transposições de passagens longas a ordem hebraica
era restaurada, numa tentativa de fazer que a LXX ficasse em maior
conformidade com o texto hebraico.
É verdade que a obra de Orígenes teve importância monumental, mas
cumpre observarmos que seu objetivo principal era diferente dos objetivos
do crítico textual de nossos dias. O propósito de Orígenes era prover uma
versão grega que correspondesse intimamente, tanto quanto possível, ao
texto hebraico. O crítico textual de hoje esforça-se por recuperar o texto
original da própria LXX, como evidência de como era o texto hebraico antes
do desenvolvimento do Texto massorético. A transmissão da LXX de
Orígenes, desacompanhada das marcações diacríticas que ele próprio
produziu, levou à disseminação de um texto grego do Antigo Testamento
corrompido, em vez de contribuir para a produção e para a preservação de
uma versão da Septuaginta que se conformasse ao texto hebraico daqueles
dias. Se os Héxapla de Orígenes houvessem sobrevivido até nossos dias,
seriam um tesouro de valor incalculável, pois seriam a cópia do texto
hebraico modelar do século III d.C. e nos ajudariam a resolver a disputa a
respeito da pronúncia das palavras hebraicas, fornecendo informações a
respeito das versões e dos textos gregos dos dias de Orígenes. Só uma
tradução da quinta coluna sobreviveu, em grande parte pelo trabalho do
bispo Paulo de Tela, no texto siro-hexaplárico, numa cópia do século VIII,
que neste momento está guardada no museu de Milão.
Outras recensões da Septuaginta. No início do século IV, Eusébio de
Cesaréia e seu amigo Panfílio publicaram suas próprias edições da quinta
coluna de Orígenes. O resultado foi que deram projeção à LXX, que se
tornou a edição em muitos lugares. Dois outros estudiosos também
tentaram fazer uma revisão do texto grego do Antigo Testamento.
Hesíquio, bispo egípcio, martirizado em 311, fez uma recensão que só se
preservou em citações do texto feitas por autores da igreja no Egito. A
recuperação de seu trabalho dependeu de citações de autores como Cirilo
de Alexandria (m. 444). As obras de Crisóstomo (m. 407) e de Teodoreto
(m. 444) podem ser usadas a fim de recuperar outra recensão do Antigo
Testamento grego conhecida como Recensão de Luciano. Luciano era
morador de Samosata e de Antioquia, também martirizado em 311.
Essas duas revisões, acopladas às obras de Áqüila, de Teodócio, de
Símaco e de Orígenes, deram aos cristãos o Novo Testamento grego, no
norte da Síria, na Ásia Menor, na Grécia, no Egito e em áreas de Jerusalém
e da Cesaréia. Tudo isso se realizou antes da época de Jerônimo. No que
concerne ao estudioso textual moderno, as várias traduções do Antigo
Testamento são testemunho valioso do texto hebraico.
As traduções do texto grego
Entre a multidão que se juntou no Dia de Pentecostes, em Jerusalém,
estavam "partos, medos e elamitas e os que habitam na Mesopotâmia,
Judéia e Capadócia, Ponto e Ásia, Frígia e Panfília, Egito e parte da Líbia
perto de Cirene, forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos,
cretenses e árabes" (At 2.9-11). Essas pessoas sem dúvida precisavam das
Escrituras em suas línguas, para que pudessem estudá-las e usá-las a fim de
propagar sua fé. Já discutimos a tradução dos textos do Antigo e do Novo
Testamento para o siríaco (aramaico) no capítulo 16, por causa do íntimo
relacionamento que essas traduções tinham com a tradução do Antigo
Testamento por judeus que falavam o aramaico. Por essa razão, nossa
atenção se dirigirá aqui a outras traduções do texto grego.
Copta
O copta é a última forma de escrita egípcia antiga. Seguiu-se aos
desenvolvimentos anteriores como os hieróglifos, as escritas hierática e
demótica (v. cap. 11). A língua grega, com sete caracteres demóticos que
lhe foram acrescentados, tornou-se a forma escrita do copta, por volta do
início da era cristã. Esse sistema de escrita tinha vários dialetos para os
quais a Bíblia foi traduzida.
Saídico (de Tebas). O dialeto copta do sul do Egito (Alto Egito) era o
saídico (de Tebas). Era falado na região da Tebas antiga, onde o Novo
Testamento foi traduzido no começo do século IV. Os manuscritos desse
dialeto representam as versões coptas mais antigas do Novo Testamento,
que Pacômio (c. 292-346), o grande organizador do monasticismo egípcio,
exigia que seus seguidores estudassem com toda a diligência. A data
remota da Versão saídica transforma-a em testemunho importante do texto
do Novo Testamento. Essa versão relaciona-se basicamente com o texto
alexandrino, ainda que os evangelhos e Atos sigam o modelo ocidental.
Boaírico (de Mênfis). No Baixo Egito (ao norte), perto de Mênfis, na
região do Delta, usava-se outra língua copta ao lado do grego. Era região
próxima a Alexandria; sua localização central e sua importância na história
da igreja primitiva refletem-se no fato de o copta boaírico ter-se tornado o
dialeto básico da igreja no Egito. O fato de essa região estar próxima de
Alexandria e o contínuo uso do grego nesse centro provavelmente
explicam o porquê de as versões boaíricas do Novo Testamento terem
aparecido depois das versões saídicas. O único documento boaírico
primitivo que sobreviveu é o Papiro Bodmer, que contém o evangelho de
João (Papiro Bodmer III). O manuscrito está seriamente mutilado na parte
inicial, estando em melhores condições onde se registra João 4 em diante.
É um manuscrito que lança muita luz sobre dois problemas textuais: João
5.3b,4 e João 7.53 — 11 (v. cap. 15). A Versão boaírica aparentemente se
relaciona com o texto de modelo alexandrino.
Dialetos do centro do Egito. A terceira área dos dialetos coptas é
aquela que fica nos centros de Tebas e de Alexandria. Os dialetos centrais
do Egito classificam-se em faiúmico, acmímico e subacmímico, segundo J.
Harold Greenlee. Não existe mais nenhum exemplar do Novo Testamento
nesses dialetos, embora João esteja quase completo. Um papiro do século
IV contém um códice no dialeto faiúmico com João 6.11 — 5.11. A
linguagem é mais próxima do saídico que do boaírico, o que o classifica
como texto do modelo alexandrino. Todos os manuscritos do Antigo
Testamento nos dialetos coptas seguem a Septuaginta.
Etíope
À medida que o cristianismo se espalhou pelo Egito e penetrou a
Etiópia, surgiu a necessidade de outra tradução da Bíblia. Embora não se
possa fazer nenhuma declaração autorizada a esse respeito, a tradução
etíope do Antigo Testamento grego parece ter sido revista à luz do texto
hebraico, com início no século IV. Ao redor do século VII essa tradução
estava terminada, e a do Novo Testamento foi feita a seguir. A tradução
completa para a língua etíope provavelmente foi realizada por monges
sírios que se mudaram para a Etiópia durante a controvérsia
monofisista(séculos V e VI) e o surgimento do islamismo (séculos VIII). A
influência deles foi profunda, como mostra o fato de a igreja etíope ter-se
mantido monofisista.
Nos séculos V e XII, fizeram-se recensões no Novo Testamento
etíope. Posteriormente esse texto foi influenciado por traduções coptas e
árabes; e é possível que na verdade se tenha baseado em texto de
manuscritos siríacos, e não nos originais gregos. Os manuscritos etíopes
provavelmente datam do século IV e V, o que reduz mais ainda a
importância da Bíblia etíope tendo em vista a crítica textual. Os
manuscritos sobreviventes revelam mistura textual, sendo porém de origem
basicamente bizantina. O Antigo Testamento inclui o livro não-canônico de
1Enoque (citado em Jd 14,15) e o Livro do Jubileu. Isso mostra que a
igreja etíope aceitava um cânon mais amplo que o aceito pelas demais
igrejas. Sobreviveram mais de cem cópias manuscritas da Bíblia etíope,
nenhuma porém anterior ao século XIII. É verdade que esses manuscritos
merecem talvez maiores estudos, mas é provável que serão negligenciados
em vista de serem relativamente recentes.
Gótica
Não está bem esclarecido em que época o cristianismo penetrou a
área das tribos germânicas entre o Reno e o Danúbio. Essa região foi
evangelizada antes do Concilio de Nicéia (325), visto que Teófilo, o bispo
dos godos, já estava em atividade. Os godos situavam-se entre as principais
tribos germânicas e desempenharam papel importante nos acontecimentos
da história da Europa durante o século v. A primeira tribo a ser
evangelizada foi a dos ostrogodos, na região do baixo Danúbio. O segundo
bispo deles, Úlfílas (311-381), "o apóstolo dos godos", liderou seus
convertidos até a área hoje conhecida como Bulgária. Ali ele traduziu a
Bíblia grega para o gótico.
Esse empreendimento teve grande importância, sobretudo se Úfílas
realizou de verdade a tarefa a ele atribuída. Consta que Úfílas criou um
alfabeto gótico e a forma escrita dessa língua. Quer ele tenha de fato feito
tal façanha, quer não, esse bispo empreendeu fidelíssima tradução para o
gótico, no século IV (c. 350) a partir da recensão que Luciano fez do
Antigo Testamento. Poucos fragmentos restaram desse Antigo Testamento,
que Úlfílas não traduziu totalmente. Ele achava que os livros de Samuel e
de Reis tratavam demais de guerras, para serem entregues às tribos góticas
que amavam tanto as atividades bélicas.
São maiores os fragmentos que sobraram do Novo Testamento gótico
traduzido por Úlfílas. Trata-se do monumento literário mais antigo que se
conhece num dialeto alemão, não tendo sido encontrado, todavia, um único
exemplar completo de uma cópia manuscrita. Sua tradução prende-se
quase literalmente ao texto grego do tipo bizantino, pelo que diz pouca
coisa ao crítico textual moderno. O principal valor da Versão gótica está
em que se trata do mais antigo documento literário em língua do grupo
germânico, a que pertence o próprio inglês. Sobreviveram seis fragmentos,
dos quais o Códice argênteo, "o códice de prata", escrito em velino púrpura
em letras prateadas e algumas douradas. Todos os demais manuscritos
góticos são palimpsestos, exceto uma folha de velino de um códice
bilingüe gótico-latino. O gótico, à semelhança do copta, é uma língua para
a qual se criou a forma escrita com o único propósito de escrever as
Escrituras Sagradas na língua do povo. Todos os seus manuscritos
abrangem os séculos V e VI.
Armênia
À medida que as igrejas sírias desenvolviam seu ministério
evangelístico, iam contribuindo para várias traduções secundárias da
Bíblia. Tais traduções são chamadas secundárias porque derivam de outras
traduções, e não dos manuscritos das línguas originais. Uma das mais
importantes dessas traduções secundárias é a armênia, ainda que nem todos
os estudiosos concordem que se trate de tradução da tradução.
Afirma-se em geral ter havido duas tradições básicas acerca da
origem da tradução armênia. Diz a primeira que Mesrobe (m. 439), soldado
que se tornou missionário, criou um novo alfabeto a fim de ajudar Saaque
(Isaque, o Grande, 390-439) a traduzir a Bíblia a partir do texto grego. A
segunda tradição afirma que sua tradução baseou-se num texto siríaco.
Embora ambas as afirmativas tenham seus méritos, a segunda parece
enquadrar-se melhor à realidade, derivada do sobrinho e discípulo do
próprio Mesrobe.
As traduções armênias mais antigas foram revistas antes do século
VIII, de acordo com alguns "códices gregos dignos de confiança", levados
de Constantinopla depois do Concilio de Éfeso (431). Essa revisão obteve
o máximo prestígio ao redor do século VIII e continua a ser hoje o texto
armênio mais comumente usado. O manuscrito mais antigo que chegou até
nós desse texto revisto data do século IX. O fato de ser tão antigo e sua
estreita afinidade com os textos cesareenses ou bizantinos fazem que seja
importante no que diz respeito à crítica textual. Embora a questão ainda
não tenha sido resolvida, o texto dos evangelhos tende para o padrão
cesareense.
A primeira tradução armênia do Antigo Testamento foi executada no
século V e revela marcante influência exercida pela Siríaca peshita, A
tradução baseada na revisão hexaplárica foi revista de acordo com a
Peshita.
Geórgica (ibérica)
A Geórgia, região montanhosa entre o mar Negro e o mar Cáspio, ao
norte da Armênia, recebeu a mensagem cristã no século IV.
Aproximadamente em meados do século v, a Geórgia tinha sua própria
tradução da Bíblia. Visto que o cristianismo se espalhou pela Geórgia a
partir da Armênia, não é de surpreender que essa mesma rota tenha sido
seguida na tradução da Bíblia. Então, se o Antigo Testamento armênio
fosse tradução da LXX ou da Siríaca peshita, e o Novo Testamento fosse
tradução da Antiga siríaca, teriam sido traduções secundárias. A tradução
geórgica constituiu um passo para o lado, por ser baseada em tradução
armênia. Ainda que a tradução armênia fosse feita a partir do original
grego, a tradução geórgica seria secundária.
O alfabeto georgiano, à semelhança do armênio e do gótico, foi
criado expressamente para o registro da Bíblia. Acompanhando o passo
dessa dependência cultural, todos os manuscritos sobreviventes da Bíblia
geórgica indicam que ela segue a tradição textual armênia.
A continuação das traduções da Bíblia pelo povo de Deus, à medida
que ia seguindo o precedente estabelecido pelos judeus, que haviam
produzido traduções em aramaico e em siríaco do Antigo Testamento,
motivou as primeiras tentativas reais para colocar todo o Antigo
Testamento em outra língua, o grego. A LXX foi produzida nos séculos m e
n a.C. Ainda que a qualidade dessa tradução varie, ela dá informações
valiosas ao crítico textual no que diz respeito ao texto hebraico do Antigo
Testamento. Além disso, foi um exemplo a ser seguido pelos demais
tradutores, à medida que iam procurando meios de comunicar a Palavra de
Deus. Com a ascensão do cristianismo, os judeus deixaram de lado a LXX, e
outras traduções e revisões foram aparecendo. Tudo isso culminou na
grandiosa obra de Orígenes, os Héxapla. À medida que o cristianismo
continuava a espalhar-se, outras traduções foram empreendidas. Afim de
executar a tarefa de traduzir, os missionários desenvolveram a língua
escrita de muitos povos. Esse fato por si só faz da Bíblia a maior força a
dirigir a história; e oferece também a razão por que alguns estudiosos das
Escrituras produziram traduções secundárias, enquanto muitos a
traduziram diretamente das línguas originais do Antigo e do Novo
Testamento.
18. Traduções latinas e afins
O cristianismo ocidental produziu apenas uma grandiosa tradução da
Bíblia, que foi transmitida ao longo de toda a Idade Média, a Vulgata
latina, de Jerônimo. Desde que essa tradução emergiu e atingiu posição
predominante, assim permaneceu, jamais desafiada, durante mil anos.
Outros estudiosos já haviam traduzido as Escrituras para o latim, antes de
Jerônimo, mas, a fim de obtermos uma compreensão melhor de sua
façanha, vamos examinar essas traduções anteriores.
Antiga latina
Antes de apresentar um retrato exato das traduções da Bíblia para o
latim, precisamos entender o ambiente lingüístico do mundo antigo em
geral e do Império Romano em particular. Examinaremos os aspectos
lingüísticos e culturais da vida no mundo antigo mediante sua estrutura
geográfica, antes de nos voltarmos para a tradução latina.
O Oriente Próximo
Os tesouros culturais do Oriente Próximo haviam sido variados, sob
os aspectos lingüístico, político e social, na época em que o Novo
Testamento foi escrito. Em qualquer momento, nos tempos antigos,
falavam-se várias línguas na área ao redor da Palestina. Acompanhando a
marcha das mudanças políticas da época, a língua oficial da região sofria
alterações radicais. Os idiomas importantes das Escrituras foram tratados
no capítulo 11, mas seus períodos de domínio precisam ser revistos, para
que possamos ter boa perspectiva do processo geral da transmissão da
Bíblia.
O aramaico. Logo após o cativeiro babilônico, o idioma oficial da
Palestina era o aramaico. Era usado pelos escribas hebreus já nos dias de
Esdras (Ne 8.1-8). Por sinal, foi em aramaico que se escreveram os
targuns, durante o período Soferim (400 a.C.-200 d.C), o Talmude e o
Midrash, no período entre 100 a.C. e 500 d.C. (v. cap. 16). Na época do
Novo Testamento, o aramaico era a língua falada pelo povo, tendo sido a
língua materna de Cristo e de seus discípulos.
O grego e o latim. Depois das campanhas de Alexandre, o Grande
(335-323 a.C), o grego tornou-se a língua oficial dentro dos limites do
território conquistado. Grande parte desse território mais tarde seria
incorporada pelo Império Romano, incluindo-se o Oriente Médio; foi
quando o grego prevaleceu como língua oficial tanto do Egito como da
Síria, sob os impérios ptolemaico e selêucida, e também da Palestina,
durante a independência hasmoneana (142-63 a.C). Por ocasião da morte
de Átalo III (133 a.C), o reino de Pérgamo submeteu-se a Roma e, por volta
de 63 a.C., todo o Oriente foi incorporado ao Império Romano. A língua
latina acompanhou esse crescimento do Estado Romano e espalhou-se
como idioma militar do Oriente Próximo.
A Grécia
Dialetos helênicos. Helênico é termo que se aplica à cultura grega da
Era Clássica. Deriva da palavra grega que quer dizer Grécia: Hellas. Os
vários dialetos helênicos (do grego) relacionam-se às três ondas de
imigração que aportaram na parte sul da península dos Bálcãs, durante o n
milênio a.C: a imigração jônia, a acaica e dórica. Os jônios foram
empurrados para ornar Egeu até a Jônia; outros gregos imigraram ou
fundaram colônias no Oriente Próximo, no norte da África e até no sul da
Itália e nas ilhas do Mediterrâneo. Ainda que os gregos se dividissem numa
série de pequenos estados, estavam unidos pela língua comum em seus
vários dialetos. O mais famoso desses dialetos era o ático, que chegou ao
clímax quando se deu a unificação dos estados gregos, com o objetivo de
fazer oposição aos persas (490-80 a.C), sendo esses liderados por Dario I e
seu filho Xerxes. Nos próximos cinqüenta anos o Império Ateniense ergueu
a cultura grega a alturas gloriosas. A guerra do Peloponeso (431-404 a.C.)
trouxe a derrota de Atenas; as cidades-estados gregas lutaram enquanto
seguiam caminhos próprios. Filipe II, rei da Macedônia (359-336 a.C.),
cedeu o trono ao filho, Alexandre (356-383 a.C), que viria a transformar
em realidade o sonho do pai de voltar a reunir os gregos, ao esmagar as
revoltas em 335. Com sua ascensão, surge a era helenística.
O grego helenístico. A cultura helênica pertencia aos povos de língua
grega. A cultura helenística, por sua vez, era imposta aos povos cuja língua
materna não era o grego, após as conquistas de Alexandre, o Grande. Esse
avanço intencional da cultura e da civilização grega usou como língua
básica uma forma lingüística nova, mas comum (o koine dialektos), que
derivava da mistura de vários dialetos gregos, conquanto primordialmente
derivasse do ático. Durante vários séculos, desde a morte de Alexandre, o
coiné haveria de tornar-se a língua oficial do Oriente Próximo e do Egito,
bem como da Grécia e da Macedônia. Aliás, foi nesse dialeto que se fez a
tradução do Antigo Testamento, a Septuaginta, ou LXX, em Alexandria (v.
cap. 17). À medida que os romanos iam penetrando a Grécia e o Oriente
Médio, e de modo especial após a batalha do Ácio (31 a.C.), o latim passou
a ser a língua usada pelos militares, pelo fato de a república romana
transformar-se em Império Romano sob o comando de Otaviano. Embora
os gregos continuassem a despender suas energias em atividades
independentes, já não estavam mais na posição de liderança no mundo
antigo.
A Itália
A partir do século I a.C, verdadeiramente todos os caminhos iam dar
em Roma. Ali estava o maior império que o Ocidente já havia visto. Seu
progresso foi contínuo, a partir do século x a.C, quando nem mesmo Roma
havia sido fundada (c. 753). Por volta de 509 a.C. os reis tarqüínios foram
expulsos da cidade, e nasceu a República Romana. Dessa época em diante
a principal cidade do Lácio e suas aliadas começaram a crescer, atingindo
enormes dimensões territoriais ao longo do rio Tibre e controlando a maior
parte da península Itálica (c. 265); o latim tornou-se a língua comum do
povo. De 264 a 146 a.C, Roma esteve em conflito com Cartago, colônia
africana da Fenícia, o que resultou nas guerras púnicas. Antes ainda de tais
guerras cessarem, Roma invadiu a área oriental do Mediterrâneo, a Ilíria e
a Macedônia (c. 229-148). Por volta de 148 a.C., a Macedônia tornou-se
província romana e, em 133, Átalo m entregou seu reino (Pérgamo) a
Roma. A presença intrusa dos soldados romanos no Oriente Próximo fez
que o latim se tornasse a língua militar e comercial (embora não a língua
oficial) do Oriente.
Na Itália, de modo especial em Roma, o povo era bilíngüe. A língua
literária das pessoas das classes mais elevadas era o grego, e até mesmo a
literatura latina seguia os padrões gregos. Embora tanto os escravos como
as pessoas livres fossem bilíngües, a língua militar e comercial era o latim.
Durante os primeiros anos da igreja, os cristãos de Roma em geral falavam
grego, como demonstram as cartas de Paulo e as de Clemente. Só mais
tarde é que os cristãos romanos começaram a usar o latim como língua de
comunicação escrita. Durante os séculos IV e V, as tribos germânicas
usavam o latim em vez do grego, mais literário, como veículo de
comunicação. Pode-se entender isso com facilidade, se nos lembrarmos de
que as tribos germânicas entraram em contato mais imediato com as
legiões romanas e com os mercadores, muito antes de conhecerem a
literatura latina.
A África
As línguas básicas do norte da África eram o grego e o latim. O
grego era usado no Egito, sob os ptolomeus, sendo Alexandria o centro das
traduções do Antigo Testamento hebraico e de outras obras para o grego.
Mais longe, a oeste, o latim tornou-se a língua básica do Império Romano,
visto que essa região ficou sob a influência dos contatos administrativos,
comerciais e militares, antes até das guerras púnicas. O latim viria a ser a
língua materna de alguns escritores cristãos como Tertuliano (que escreveu
tanto em grego como em latim), Cipriano e outros. A igreja primitiva
dentro do Império Romano usava o grego como língua literária, e só mais
tarde passaria a usar o latim e outras línguas, porque essas se tornaram
necessárias e amplamente divulgadas.
As traduções para o latim antigo
Embora o latim fosse a língua oficial, a língua comum do Ocidente, o
grego manteve sua posição de língua literária de Roma e do Ocidente até o
século III. Ao redor dessa época, as traduções das Escrituras Sagradas para
o latim antigo já estavam circulando no norte da África e na Europa, o que
indicava que os cristãos começaram (no século II) a expressar o desejo de
uma tradução da Bíblia para o latim.
O Antigo Testamento. Uma das mais antigas traduções conhecidas
das Escrituras hebraicas, no Ocidente, foi aquela conhecida pela alcunha de
Antiga latina, redigida antes de 200 d.C. Era uma tradução feita a partir da
LXX, no norte da África, tendo sofrido certa influência judaica. Essa
tradução latina foi largamente usada e citada no norte da África. Teria sido
esse o Antigo Testamento usado por Tertuliano e por Cipriano no século II.
Houve, segundo parece, acréscimo póstumo dos apócrifos não revistos
dessa tradução à Vulgata de Jerônimo (Antigo Testamento latino). A não
ser pelas citações e pelos fragmentos que chegaram até nós dos
manuscritos da Antiga latina, nada mais sobrou dessa obra. Seu valor para
o crítico textual de nossos dias é quase nulo.
O Novo Testamento. A versão do Novo Testamento também chamada
Antiga latina é assunto completamente diferente. Sobreviveram dessa obra
cerca de 27 manuscritos dos evangelhos, mais 7 do livro de Atos, 6 das
cartas paulinas e alguns fragmentos das cartas gerais e do Apocalipse. Tais
manuscritos datam do século IV até o XIII, não existindo, porém, nenhuma
cópia do códice. Esse fato mostra que a Antiga latina continuou a ser
copiada muito tempo depois de haver sido desalojada pela Vulgata.
O Novo Testamento da Antiga latina, de data muito antiga, constitui
um dos mais valiosos testemunhos documentais das condições do Novo
Testamento no Ocidente. É representado por dois, possivelmente três
diferentes textos. O texto africano era usado por Tertuliano e por Cipriano;
um texto europeu aparece nos escritos de Irineu e de Novaciano; e um
texto itálico (Ítala) é mencionado nas obras de Agostinho. Em vez de
considerar o texto de Agostinho o precursor da Vulgata, a tendência recente
tem sido considerá-lo simples referência à Vulgata. Se for esse o caso,
haveria apenas dois textos diferentes do Novo Testamento na Antiga latina.
O texto africano reflete-se no Códice bobiense (k); é uma tradução
tosca e livre do texto grego, datando do século II. O texto europeu é
representado por dois códices: o Códice vercelense (a), escrito por Eusébio
de Vercelli, morto em 370-371, e o Códice veronense (b), que serviu de
base para a Vulgata latina.
AVulgata latina
Os numerosos textos da Antiga latina que apareceram ao redor da
segunda metade do século IV induziram a uma situação intolerável. Em
virtude desse problema, Dâmaso, bispo de Roma (366-384), providenciou
uma revisão do texto da Antiga latina. O resultado desse esforço chama-se
Vulgata latina.
O propósito da tradução
Dâmaso de Roma demonstrou profundo interesse pelas Escrituras,
bem como pelos estudiosos de quem se tornara amigo e a quem
patrocinava. Estava perfeitamente ciente da diversidade de versões,
traduções, revisões e recensões bíblicas no século IV, e acreditava estar
fazendo falta uma nova versão autorizada das Escrituras latinas.
Confusão de textos latinos. Como dissemos anteriormente, havia
muita confusão a respeito dos textos latinos da Bíblia. Tal diversidade
advinha do fato de o Antigo Testamento latino ser na verdade uma tradução
da LXX; o Novo Testamento havia sido traduzido em ocasiões informais,
não-oficiais. Exemplo disso pode-se ver na tradução latina usada por
Tertuliano. Ele era bilíngüe, capacitado para ler e escrever em grego e em
latim; usava o texto africano da Antiga latina até fazer sua própria
tradução. Não havia fim para os problemas causados por tais traduções
relâmpagos, de modo especial se outras pessoas tentassem comparar a
autoridade textual subjacente à obra de Tertuliano.
As muitas traduções então existentes. Havia inúmeras traduções das
Escrituras, mas o latim tornava-se rapidamente a língua oficial da igreja.
Além das traduções mencionadas nos capítulos 16 e 17, houve dois textos
básicos da Antiga latina no Ocidente. Não era de admirar que Dâmaso
desejasse uma tradução nova, autorizada, sobre a qual se poderiam basear
as doutrinas oficiais da igreja.
Heresias e controvérsias. Dentro do Império Romano passou a existir
muitas controvérsias entre cristãos e judeus. Até mesmo dentro da igreja
houve inúmeras controvérsias, logo depois do surgimento de grupos
heréticos como os marcionitas, os maniqueus e os montanistas, que
baseavam suas doutrinas em seus próprios cânones e traduções de livros da
Bíblia. A controvérsia ariana ocasionou o Concilio de Nicéia (325), o de
Constantinopla I (381) e o de Éfeso (431). A controvérsia em torno da
tradução do Antigo Testamento por Jerônimo com base no original
hebraico reflete não só os conflitos entre cristãos e judeus, mas a crença
mais problemática ainda sustentada por muitos líderes cristãos, dos quais
Agostinho, segundo a qual a LXX era verdadeiramente a Palavra inspirada,
inerrante, da parte de Deus, em vez de mera tradução não-inspirada
baseada em originais hebraicos.
A necessidade de um texto modelar. Havia outros fatores que exigiam
uma tradução nova, autorizada: dentre esses, a exigência dos estudiosos de
um texto modelar, autorizado e confiável, que fosse o veículo das
atividades didáticas da igreja, de seus programas missionários e de sua
defesa das doutrinas estabelecidas nos grandes concílios. A transmissão de
exemplares das Escrituras às igrejas do Império exigia um texto digno da
máxima confiança (fidedigno), mas essa situação real sublinhava tal
exigência e necessidade.
O autor da Vulgata latina
Sofrônio Eusébio Jerônimo (c. 340-420) nascera de pais cristãos, em
Estridão, na Dalmácia. Havia sido educado na escola local até sua ida a
Roma, com a idade de doze anos. Durante os oito anos seguintes, Jerônimo
estudou latim, grego e autores pagãos, antes de tornar-se cristão, com a
idade de dezenove anos. Logo após sua conversão e batismo, Jerônimo
devotou-se a uma vida de rígida abstinência e de serviço ao Senhor. Passou
muitos anos perseguindo uma vida semi-ascética de ere-mita. De 374 a
379, empregara um rabino judeu para que lhe ensinasse o hebraico,
enquanto estivesse residindo no Oriente, perto de Antioquia. Foi ordenado
presbítero em Antioquia antes de partir para Constantinopla, onde passou a
estudar sob a orientação de Gregório de Nazianzo. Em 382, foi convocado
por Roma para ser secretário de Dâmaso, bispo de Roma, e nomeado
membro de uma comissão para revisar a Bíblia latina. É provável que
Jerônimo tenha aceitado o projeto em virtude de sua devoção a Dâmaso,
pois sabia que as pessoas de menor instrução se oporiam fortemente a sua
tradução.
A data e o lugar da tradução
Jerônimo recebeu a incumbência em 382 e iniciou seu trabalho quase
imediatamente. A pedido de Dâmaso, introduziu uma ligeira revisão nos
evangelhos, completada em 383. Não se sabe qual teria sido o texto latino
que ele usou para fazer sua revisão; provavelmente teria sido do tipo
europeu, o qual ele corrigiu de acordo com o texto grego do tipo
alexandrino. Logo após ter terminado a revisão dos evangelhos, morre-lhe
o mecenas (384), tendo sido eleito novo bispo de Roma. Jerônimo, que
aspirava a esse cargo, já havia terminado uma revisão rápida do chamado
Saltério romano quando regressou ao Oriente e se estabeleceu em Belém.
No entanto, após sua partida, fez uma revisão mais superficial ainda do
resto do Novo Testamento. Por ser desconhecida a data dessa revisão,
alguns estudiosos acreditam que nem sequer ele fez o trabalho. De volta a
Belém, Jerônimo voltou sua atenção a uma revisão mais cuidadosa do
Saltério romano, que completou em 387. Essa revisão é conhecida como
Saltério galileu, empregado atualmente no Antigo Testamento da Vulgata.
Baseou-se de fato nos Héxapla de Orígenes, a quinta coluna, sendo mera
tradução dos Salmos. Tão logo havia terminado sua revisão dos Salmos,
Jerônimo iniciou a revisão da LXX, embora esse trabalho não fizesse parte
de seus objetivos iniciais. Estando em Belém, Jerônimo havia Iniciado seu
trabalho de aperfeiçoar seus conhecimentos do hebraico, de modo que
pudesse executar uma nova tradução do Antigo Testamento diretamente
das línguas originais.
Os amigos ao redor aplaudiram seus esforços, mas outros, muito
longe, começaram a suspeitar que Jerônimo estaria judaizando; alguns se
enfureceram quando Jerônimo lançou dúvidas sobre a "inspiração da
Septuaginta". A partir dessa época, ele se tornou mais envolvido com sua
tradução e com a supervisão dos monges de Belém. Traduziu o Saltério
hebraico com base no texto hebraico usado na época, na Palestina. Na
verdade, sua tradução jamais suplantou o Saltério galileu, nem o Saltério
romano, no uso litúrgico, embora fosse calcada nas línguas originais e não
em traduções. Jerônimo continuou a traduzir as Escrituras hebraicas a
despeito da oposição e da saúde precária. Finalmente, em 405, completou
sua tradução latina do Antigo Testamento hebraico, que não recebeu boa
acolhida de imediato. Nos últimos quinze anos de vida, Jerônimo
continuou escrevendo, traduzindo e revisando sua tradução do Antigo
Testamento.
Jerônimo pouca atenção deu aos apócrifos; só com grande relutância
produziu uma tradução apressada de algumas passagens de Judite, de
Tobias e do resto de Ester, mais as adições de Daniel — antes de morrer. O
resultado foi que a versão dos livros apócrifos, pertencente à Antiga latina,
foi adicionada à Bíblia chamada Vulgata latina na Idade Média, sobre o
cadáver de Jerônimo.
A reação perante a tradução
Quando Jerônimo publicou sua revisão dos evangelhos, fez-se ouvir
acrimoniosa reação a ela. Como seu trabalho fosse patrocinado pelo bispo
de Roma, a oposição silenciou-se. Sua relutância de prosseguir com a
revisão do restante do Novo Testamento atesta a possibilidade de Jerônimo
estar consciente da morte iminente de Dâmaso, seu patrocinador. O fato de
Jerônimo ter saído de Roma apenas um ano após a morte do mecenas apóia
essa crença, e as revisões mais brandas que fez quando de fato revisou o
restante do Novo Testamento mostra sua preocupação de conquistar a
aprovação da crítica. A adoção do Saltério romano pela igreja de Roma
revela que lá se deu seu primeiro uso e que a perícia de Jerônimo já se
fazia notória. Uma vez que o Saltério galicano foi aceito pelas igrejas de
fora de Roma, parece que Dâmaso não foi tão influente na crítica da obra
inicial de Jerônimo.
Quando Jerônimo começou a estudar o hebraico em Belém e ao
traduzir o Saltério hebraico, suscitaram-se contra ele severos protestos de
acusação. Foi acusado de presunção, de fazer inovações ilícitas e de
cometer sacrilégio. Não sendo alguém que encarasse a crítica com
tranqüilidade, ele usou os prefácios de suas traduções e revisões como
ferramentas de contra-ataque, Esses elementos só puseram mais lenha na
fogueira, e a tradução de Jerônimo foi rechaçada por muitas das mais
importantes autoridades eclesiásticas. Entre esses críticos achava-se
Agostinho, que se pronunciara contra a tradução do Antigo Testamento,
mas sinceramente apoiava suas revisões do Novo Testamento após 398.
A posição de Agostinho nos fornece uma visão sintetizada do que ao
longo da história ocorreu ao Antigo Testamento da Vulgata. Nos primeiros
anos dessa tradução, Agostinho e a grande maioria das autoridades
eclesiásticas influentes opuseram-se à tradução por não se fundamentar na
LXX. Por sinal, Agostinho e os demais usaram a revisão neotestamentária
de Jerônimo, embora insistissem com ele para que fizesse a tradução do
Antigo Testamento tomando como base a LXX, que se julgava inspirada.
Imediatamente após a morte do grande estudioso, em 420, sua
tradução do Antigo Testamento conquistou vitória absoluta sobre as demais
traduções. Não é possível precisar com justeza se isso se deveu meramente
ao peso da tradução, pois a crítica e a denúncia mordazes à sua tradução
dificilmente seriam desconsideradas por conta de seus méritos. A Vulgata
passou a ser o texto modelar da Bíblia, reconhecido extra-oficialmente, em
toda a Idade Média. Somente no Concilio de Trento (1546-1563),
entretanto, foi oficialmente elevada àquela posição pela Igreja Católica
Romana. Entrementes, foi publicada em colunas paralelas, ao lado de
outras traduções. Quando o latim se tornou a língua predominante dos
estudiosos europeus, outras traduções e versões se desvaneceram, ficando
em segundo plano em relação à Vulgata de Jerônimo.
Os resultados da tradução
De interesse primordial para o estudante da Bíblia moderna é o peso
da Vulgata latina em comparação a outras traduções. Por essa razão, deve
ela ser examinada à luz da história. Como se tem dito, o Novo Testamento
da Vulgata era tão-só uma revisão do texto da Antiga latina, e não uma
revisão crítica por assim dizer. O texto dos apócrifos contidos na Vulgata é
de valor ainda menor, já que se trata simplesmente do texto da Antiga
latina anexado à tradução veterotestamentária de Jerônimo, salvo exceções
de pouca monta. O Antigo Testamento da Vulgata é matéria inteiramente
diversa, entretanto, visto tratar-se na realidade de uma revisão do texto
hebraico, e não apenas outra tradução ou revisão. O texto do Antigo
Testamento é assim muito mais importante para os estudiosos da Bíblia que
o do Novo.
Era inevitável que o texto da Vulgata se corrompesse na transmissão
ao longo da Idade Média. Por vezes, essa corrupção resultava de uma
transcrição inadvertida e da interpenetração de elementos do texto da
Antiga latina qual era muitas vezes publicada. Em toda a Idade Média,
tentaram-se nos monastérios várias revisões e recensões do texto da
Vulgata. Isso gerou o acúmulo de mais de 8 000 manuscritos da Vulgata.
Entre esses manuscritos, evidencia-se a maior quantidade de
"transcontaminação" de tipos textuais. Além disso, o Concilio de Trento
baixou um "Decreto concernente à edição e ao uso dos livros sagrados",
segundo o qual "de todas as edições latinas [...] a dita antiga Vulgata [...]
[é] tida como confiável".
É justo perguntar qual das 8 000 cópias manuscritas e qual edição da
Vulgata em especial devem ser tidas como autoridade máxima. Por
conseguinte, o Concilio de Trento ordenou que se preparasse uma edição
confiável, da Vulgata. Convocou-se uma comissão papal para a tarefa, mas
não pôde vencer as muitas dificuldades que tinha pela frente. Por fim, em
1590, o papa Sixto v publicou uma edição própria apenas alguns meses
antes de morrer. A edição sixtina foi pouco aceita entre os estudiosos,
sobretudo os jesuítas, e somente circulou por pouco tempo. Gregório XIV
(1590-1591) ascendeu à cátedra papal e imediatamente estava pronto para
revisar o texto sixtino drasticamente. Sua morte súbita teria levado a termo
a revisão do texto sixtino não fosse o interesse renovado de seu sucessor,
Clemente vi (1592-1605). Em 1604, publicou-se uma nova edição da
Vulgata, confiável, conhecida como edição sixtino-clementina. Diferia da
versão sixtina numas 4 900 variantes e passou a ser o texto predominante
da Vulgata, suplantando até mesmo a edição de Gutenberg, impressa na
Mongúcia entre 1450 e 1455. Desde 1907, uma revisão crítica do Antigo
Testamento da Vulgata foi empreendida pela ordem beneditina. O Novo
Testamento foi submetido a uma revisão crítica por um grupo de estudiosos
anglicanos de Oxford. Foi encetada pelo bispo John Wordsworth e pelo
professor H. J. White, entre 1877 e 1926, sendo concluída por H. F. D.
Sparks, em 1954.
A coerência do texto da Vulgata é muito pouca desde o século VI, e
seu caráter geral é algo imperfeito. Não obstante, a influência da Vulgata
na língua e na cultura do cristianismo ocidental tem sido imensa, embora
seu valor para a crítica textual não se lhe aproxime. Quando se descobre o
texto de Jerônimo a partir de sua própria crítica textual, ele revela que o
Novo Testamento de Jerônimo era uma revisão da Antiga latina de fins do
século IV e seu Antigo Testamento era versão de fins do século IV ou
começo do século v do texto hebraico em uso no Oriente. Os apócrifos
mostram que Jerônimo não lhes destinava muito apreço, uma vez que só
com relutância traduziu quatro livros, e que eram muito populares nos
círculos católicos romanos. Só uns poucos indivíduos reconheceram seu
erro em aceitar o Antigo Testamento da LXX como autorizado e inspirado,
apoiando a precisão do texto hebraico que servia de fonte da versão de
Jerônimo, a Vulgata. Entre eles, estava Agostinho, bispo de Hipo, que seria
a voz predominante no séculos seguintes da história da igreja. Naqueles
séculos, a Vulgata passou a ser a edição predominante da Bíblia na Idade
Média. Também serviu de base para a maioria dos tradutores da Bíblia
anteriores ao século XIX.
As traduções secundárias
Em meados do século IX, formou-se na Europa centro-oriental o
Império Morávio. Esse reino foi tomado pelo cristianismo, e seus líderes
eclesiásticos usaram o latim em sua liturgia. Os leigos não conheciam o
latim, e Rostislav, fundador do reino, solicitou que se enviassem sacerdotes
eslavônicos para realizar os cultos na igreja na língua do povo. Nessa
época só o eslavônico era falado nessa região da Europa.
Em resposta à solicitação de Rostislav, o imperador Miguel m enviou
dois monges à Morávia saídos de Bizâncio (Constantinopla). Os monges
eram os irmãos Metódio e Constantino, naturais de Tessalônica.
Constantino mudou seu nome para Cirilo ao ingressar no monastério. A fim
de executar sua tarefa, os irmãos criaram um novo alfabeto, conhecido
como alfabeto cirílico. Compõem-se de 36 letras e é ainda o meio de
escrita do russo, do ucraniano, do servo-croata e do búlgaro. O alfabeto
cirílico suplantou o alfabeto local, o glagolítico, no século X.
Logo após entrarem na região, Cirilo e Metódio começaram a
traduzir os evangelhos para o antigo eslavônico. Depois, esses "apóstolos
aos eslavos" começaram a traduzir o Antigo Testamento. Acreditou-se em
certa altura que a tradução fora da LXX, mas evidências recentes mostram
que na verdade fora executada a partir do latim. O Novo Testamento segue
o texto bizantino, embora com muitas interpretações ocidentais e
cesareenses. A maior parte dos manuscritos eslavônicos se compõe de
lecionários, e a primeira tradução em si pode ter sido na forma de
lecionário.
Das demais traduções fundamentadas no texto latino, somente as
traduções anglo-saxônica e frâncica requerem informações. O texto anglosaxônico
será tratado no capítulo 19, e a tradução frâncica foi publicada em
edição bilíngüe. É conhecida por um fragmento de manuscrito do século
viu com trechos de Mateus ao lado de um texto latino.
19. As primeiras traduções para o inglês
A corrente saída de Deus até nós toma novo rumo dessa vez. O texto
bíblico nas línguas originais e nas primeiras traduções dão lugar à
transmissão particular do texto na língua inglesa. Embora u Antigo
Testamento tenha sido escrito sobretudo em hebraico, e o Novo tenha sido
escrito basicamente em grego, existem mais traduções modernas da Bíblia
em inglês que em qualquer outra língua.
Traduções parciais para o antigo e para o médio inglês
O inglês é uma espécie de dialeto-apêndice do baixo-alemão, que em
si pertence ao ramo teutônico ocidental do grupo teutônico de línguas da
família indo-européia. A fim de colocá-lo no seu devido cenário é preciso
traçar um esboço dos antecedentes da língua inglesa e do lugar que nela
ocupa a Bíblia.
O desenvolvimento recente da língua inglesa
Não se sabe com certeza como a língua inglesa se desenvolveu, mas
a maioria dos estudiosos segue a orientação de Beda, o Venerável (c. 673-
735), que data seu início em cerca de 450 da era cristã. O período de 450 a
1100 é denominado anglo-saxônico, ou do antigo inglês, por ter sido
dominado pela influência dos anglos, dos saxões e dos jutos em seus vários
dialetos. Apos a invasão normanda de 1066, a língua sofreu a influência de
dialetal escandinavos, e o período do médio inglês apareceu de 1100 a
1500. Esse foi o período de Geoffrey Chaucer (1340-1400) e de John
Wycliffe. Após a invenção da prensa móvel por Johann Gutenberg (c.
1454), o inglês entrou em seu terceiro período de desenvolvimento: o do
inglês moderno (1500 até o presente). Esse período de desenvolvimento foi
precipitado pela grande mudança vocálica no século que se seguiu à morte
de Chaucer e precedeu ao nascimento de William Shakespeare. Com esses
antecedentes em mente, nosso levantamento das várias traduções da Bíblia
para o inglês deve ser mais significativo.
As traduções parciais para o antigo inglês (450-1100)
A princípio, apenas quadros, pregações, poemas e paráfrases eram
usados para comunicar a mensagem da Bíblia aos britânicos. As primeiras
traduções de partes das Escrituras basearam-se nas traduções da Antiga
latina e da Vulgata, e não nas línguas originais, o hebraico e o grego, e
nenhuma delas continha o texto da Bíblia toda. Não obstante, elas ilustram
a maneira pela qual a Bíblia entrou para a língua inglesa.
Cedmão (m. c. 680). A história de Cedmão é encontrada na História
eclesiástica, de Beda. Dela faz parte um trabalhador pouco talentoso do
mosteiro de Whitby, em Yorkshire, na Nortúmbria, que deixou uma festa
certa noite por medo de ser intimado a cantar. Mais tarde nessa noite, ele
sonhou que um anjo lhe ordenara que cantasse sobre como as coisas foram
criadas no princípio. Outras paráfrases e poemas cantados por Cedmão
incluíram a história completa do Gênesis, o êxodo de Israel do Egito, a
encarnação, a paixão, a ressurreição e a ascensão do Senhor, a descida do
Espírito Santo, os ensinamentos dos apóstolos etc. Sua obra tornou-se a
base para outros poetas, escritores e tradutores, pois transformou-se na
Bíblia popular dos seus dias para o povo. Conseguintemente, os cânticos
de Cedmão eram decorados e disseminados por todo o país.
Aldhelm (640-709). Aldhelm foi o primeiro bispo de Sherborne em
Dorset. Logo depois do ano 700, ele traduziu o Saltério para o antigo
inglês. Foi a primeira tradução direta de qualquer parte da Bíblia para a
língua inglesa.
Egberto (fl. c. 700). Egberto da Nortúmbria tornou-se arcebispo de
Iorque pouco depois da morte de Beda. Ele foi também o mestre de
Alcuíno de Iorque, que foi mais tarde chamado por Carlos Magno para
estabelecer uma escola na corte de Aix-la-Chapelle (Aachen), Por volta de
705, Egberto traduziu os evangelhos para o antigo inglês pela primeira vez.
Beda, o Venerável (674-735). Maior estudioso da Inglaterra e um dos
maiores de toda a Europa dos seus dias, Beda residiu em Jarrow-on-the-
Tyne, na Nortúmbria. De lá, ele escreveu sua famosa História eclesiástica
e outras obras. Entre essas obras encontrava-se uma tradução do evangelho
de João, cujo propósito foi provavelmente o de suplementar os três outros
traduzidos por Egberto. Segundo relatos tradicionais, Beda terminou a
tradução na hora da morte.
Alfredo, o Grande (849-901). Alfredo foi um estudioso de primeira,
além de ter sido rei da Inglaterra (870-901). Durante seu reinado, a Lei
Danesa foi estabelecida sob o Tratado de Wedmore (878). O tratado
continha somente duas estipulações para os novos súditos: batismo cristão
e fidelidade ao rei. Juntamente com sua tradução da História eclesiástica
de Beda do latim para o anglo-saxão, ele também traduziu os Dez
mandamentos, excertos do Êxodo, 21— 23, de Atos, 15.23-29, e uma
forma negativa da Regra áurea. Foi durante o seu reinado que a Inglaterra
experimentou um reavivamento do cristianismo.
Aldred (fl. c. 950). Outro elemento foi introduzido na história da
Bíblia inglesa quando Aldred escreveu um comentário nortumbriano entre
as linhas de uma cópia dos evangelhos escrita no latim do final do século
VII. É da cópia latina de Eadfrid, bispo de Lindisfarne (698-721), que a
obra de Aldred recebe seu nome, os Evangelhos de Lindisfarne. Uma
geração depois, o escriba irlandês MacRegol fez outro comentário anglosaxônico
conhecido como Evangelhos de Rushworth.
Aelfric (fl. c. 1000). Aelfric foi bispo de Eynsham, em Oxfordshire,
Wessex, quando traduziu partes dos sete primeiros livros do Antigo
Testamento. Essa tradução e outras partes do Antigo Testamento que ele
traduziu e citou em suas homilias basearam-se no texto latino. Mesmo
antes da época de Aelfric, os Evangelhos de Wessex foram traduzidos para
o mesmo dialeto. Esses elementos constituem a primeira tradução existente
dos evangelhos para o antigo inglês.
As traduções parciais para o médio inglês (1100-1400)
A conquista normanda (1066) deu-se graças à disputa em torno do
trono de Eduardo, o Confessor. Com ela, o período do domínio saxônico na
Inglaterra chegou ao fim, e um período de influência normando-francesa se
fez sentir sobre a língua dos povos conquistados. Durante esse período de
domínio normando foram feitas outras tentativas de traduzir a Bíblia para o
inglês.
Orm ou Ormin (fl. c. 1200). Orm foi um monge agostiniano que
escreveu uma paráfrase poética dos evangelhos e de Atos acompanhada de
comentário. Essa obra, o Ormulum, é preservada em um único manuscrito
de 20 000 palavras. Embora o vocabulário seja puramente teutônico, a
cadência e a sintaxe mostram a influência normanda.
Guilherme de Shoreham (fl. c. 1320). Shoreham freqüentemente
recebe o crédito de ter produzido a primeira tradução em prosa de uma
parte da Bíblia para um dialeto sulista do inglês, embora exista alguma
dúvida quanto a ele ter sido realmente o tradutor dessa obra de 1320.
Ricardo Rolle (fl. c. 1320-1340). Rolle é conhecido como o "Eremita
de Hampole". Foi responsável pela segunda tradução literal das Escrituras
para o inglês. Vivendo perto de Doncaster, em Yorkshire, fez sua tradução
da Vulgata latina para o dialeto inglês do norte. Sua tradução do Saltério
foi amplamente divulgada e reflete o desenvolvimento da tradução da
Bíblia inglesa até a época de JohnWycliffe.
As traduções completas para o médio inglês e para o inglês moderno em
fase inicial
Embora não houvesse nenhuma Bíblia completa em inglês antes do
século XIV, diversos indícios apontavam para o aparecimento iminente de
uma. A ampla circulação do Saltério literal de Rolle na exata época em que
a corte papal passava por lutas se associou ao chamado cativeiro babilônico
(1309-1377). Esse acontecimento e suas conseqüências formaram o pano
de fundo para a obra de outros tradutores bíblicos.
As traduções da Bíblia dos séculos XIV e XV
John Wycliffe (c. 1320-1384). Wycliffe, a "Estrela d'Alva da
Reforma", viveu durante o cativeiro babilônico, tempo em que viveram
Geoffrey Chaucer e João de Gaunt. Em seu recuo contra a apatia espiritual
e a degeneração moral dos clérigos da Inglaterra, ele foi forçado à
notoriedade como oponente do papado. Wycliffe afastou o latim
escolástico como veículo de comunicação e dirigiu seu apelo ao povo
inglês na língua comum. Seu apelo foi dirigido por meio dos lollardos,
ordem de pregadores itinerantes também conhecidos como os "sacerdotes
pobres". Esses lollardos cruzaram o país pregando, lendo e ensinando a
Bíblia em inglês. Para poder ajudá-los em sua tarefa, era necessária uma
nova tradução da Bíblia. A tradução do Novo Testamento foi completada
em 1380, e o Antigo Testamento apareceu em 1388. Embora essa tradução
completa seja atribuída a Wycliffe, ela foi terminada depois de sua morte
por Nícolas de Hereford.
As traduções foram feitas a partir de manuscritos da época da
Vulgata latina. Os manuscritos sobre os quais essas traduções se basearam
refletem uma qualidade e uma tradição textual geralmente inferiores, mas
serviram de base para a primeira tradução completa da Bíblia em inglês.
Com a tradução que Wycliffe fez da Bíblia, uma nova época na história da
Bíblia foi instaurada. Um dos princípios básicos de Wycliffe foi
estabelecido por Hampole, a saber, que os tradutores não buscariam
nenhuma palavra estranha e usariam o inglês mais fácil e mais comum, que
fosse o mais parecido com o latim, a fim de que aqueles que não
soubessem latim pudessem, por intermédio do inglês, chegar a muitas
palavras latinas.
João Purvey (c. 1354-1428). João Purvey desempenhou o ofício de
secretário de Wycliffe e é reconhecido por ter feito uma revisão da primeira
Bíblia de Wycliffe em 1395. Essa revisão é comumente conhecida como a
Versão posterior de Wycliffe, e aquela como a Primeira versão de Wycliffe,
embora o termo versão não se aplique estritamente a nenhuma delas.
A revisão feita por Purvey substituiu muitas construções latinas por
expressões inglesas nativas. Ela também substituiu o prefácio de Jerônimo
por um extenso prólogo escrito por Purvey. O resultado final foi o contínuo
enfraquecimento da influência papal sobre o povo inglês. Na forma mais
ampla, a primeira Bíblia inglesa completa foi publicada, revisada e
circulada antes da obra de João Huss (c. 1369-1415) na Boêmia. Ela foi
também publicada antes da invenção de Johann Gutenberg (c. 1454),
desenvolvimento revolucionário que teve efeito refreador na disseminação
das traduções deWycliffe.
As traduções da Bíblia do século XVI
A transformação da Inglaterra e também de toda a Europa seguiu-se à
Renascença e à característica que a acompanhou: o reavivamento literário,
a elevação do nacionalismo e o espírito de exploração e de descoberta. O
ressurgimento dos clássicos seguiu-se à queda de Constantinopla em 1453,
Johann Gutenberg (1296-1468) inventou a prensa móvel e papel mais
barato foi introduzido na Europa. Em 1456 foi publicada a Bíblia Mazarin.
A língua grega começou a ser estudada publicamente na Universidade de
Paris em 1458, a primeira gramática grega surgiu em 1476 e um
vocabulário grego foi publicado em 1492. Em 1488, a Bíblia hebraica foi
publicada, a primeira gramática hebraica saiu em 1503 e o primeiro
vocabulário hebraico apareceu em 1506.
Mesmo antes de 1500, havia mais de oitenta edições da Bíblia latina
publicadas na Europa, a uma geração de distância da introdução em 1476,
na Inglaterra, por Claxton, do novo método de imprensa. Aliás, o cenário
era tal que se fez necessário um estudioso para moldar os originais
hebraico e grego em inglês escorreito, pois nenhuma simples conversão do
texto latino seria suficiente para satisfazer à demanda da situação.
William Tyndale (c. 1492-1536). William Tyndale foi o homem que
podia fazer o que era necessário, e ele teve a fé e a coragem para
perseverar a todo custo. Após tentativas malfadadas de fazer sua tradução
na Inglaterra, embarcou para o Continente em 1524. Após outras
dificuldades, finalmente imprimiu o Novo Testamento em Colônia, no fim
de fevereiro de 1526. Seguiu-se uma tradução do Pentateuco, em
Marburgo (1530), e de Jonas, na Antuérpia (1531). As influências de
Wycliffe e de Lutero eram evidentes no trabalho de Tyndale e o
mantiveram sob constantes ameaças. Além disso, essas ameaças eram
tantas, que as traduções de Tyndale tiveram de ser contrabandeadas para a
Inglaterra. Tendo chegado lá, exemplares foram comprados por Cuthbert
Tunstall, bispo de Londres, que as fez queimar publicamente em St. Paul's
Cross. Até mesmo sír Thomas More (1478-1535), humanista, presidente da
Câmara dos Pares, na Inglaterra de Henrique VIII, e autor de Utopia,
atacou a tradução de Tyndale por pertencer à mesma "seita perniciosa" da
tradução alemã de Lutero.
Em 1534, Tyndale publicou sua revisão do Gênesis e começou a
trabalhar numa revisão do Novo Testamento. Pouco depois de completar
essa revisão, foi seqüestrado na Antuérpia e levado à fortaleza de Vilvorde,
em Flandres. Ali continuou a traduzir o Antigo Testamento. Em agosto de
1536, foi condenado por heresia, destituído do seu ofício sacerdotal e
entregue às autoridades seculares para ser executado. A execução deu-se no
dia 6 de outubro. Na hora da execução, Tyndale clamou: "Senhor, abre os
olhos do rei da Inglaterra". Naquela hora exata os acontecimentos na
Inglaterra conspiravam para a realização do último pedido do tradutor.
Miles Coverdale (1488-1569). Miles Coverdale, assistente e revisor
de provas de Tyndale na Antuérpia, tomou-se a peça-chave na impressão da
primeira Bíblia completa em inglês. Essa obra foi pouco mais que uma
revisão da tradução completa de Tyndale, acrescida de percepções
extraídas das traduções alemãs.
Coverdale introduziu resumos de capítulos e algumas novas
expressões no texto da sua tradução. Também estabeleceu o precedente de
separar o Antigo Testamento dos livros apócrifos nas Bíblias traduzidas
depois que a Vulgata latina atingiu sua posição de proeminência na igreja
ocidental. A tradução de Coverdale foi reimpressa duas vezes em 1537,
novamente em 1550 e mais uma vez em 1553. Não obstante, a verdadeira
sucessora da edição de 1535 foi a Grande Bíblia de 1539. Falaremos sobre
essa Bíblia em breve.
Thomas Matthew (c. 1500-1555). Thomas Matthew foi o
pseudônimo literário de John Rogers, o primeiro mártir das perseguições
sob o domínio de Mary Tudor. Ele também fora assistente de Tyndale. Em
1537, publicou outra Bíblia em inglês combinando os textos do Antigo
Testamento de Tyndale e de Coverdale com a revisão de 1535 do Novo
Testamento feita por Tyndale. Essa Bíblia não foi publicada de novo senão
em 1549 e 1551. Em 1549, uma edição levemente revisada também foi
publicada, e em 1551 apareceu uma Bíblia que trazia a inscrição "De
Matthew" na página de rosto, mas continha o Antigo Testamento de
Taverner e a edição de 1548 do Novo Testamento de Tyndale.
John Rogers se recusava a colocar seu nome verdadeiro em trabalho
que tivesse sido feito por outros, embora os publicasse. Em vez disso, ele
usava o pseudônimo literário, Thomas Matthew, e acrescentava copiosas
notas e referências. Além das edições de Tyndale e de Coverdale, ele
tomou muito de empréstimo das edições francesas de Lefèvre (1534) e de
Olivetan (1535). Quando publicou sua edição de 1537, fê-lo com a
permissão de Henrique VIII. Com a sua publicação, havia duas Bíblias
inglesai) autorizadas, em circulação dentro de um ano após a morte de
Tyndale. Seus assistentes haviam continuado o trabalho do companheiro
martirizado, e outros seguiriam seus passos.
Richard Taverner (1505-1575). Taverner foi um leigo com grandes
CCH nhecimentos do grego. Em 1539, aplicou seu talento a uma revisão
da Bíblia de Matthew e produziu uma tradução que aproveitava muito mais
o artigo grego. Não obstante, a obra de Taverner logo seria ultrapassada por
ainda outra revisão da Bíblia de Matthew, a Grande Bíblia, de 1539.
Grande Bíblia (1539). As notes e os prólogos das duas principais
traduções inglesa que circulavam em 1539, a de Coverdale e a de Matthew,
constituíam uma afronta tão grande para tantos grupos da Inglaterra, que
Henrique viu se viu freqüentemente intimado a providenciar uma nova
tradução livre de interpretações. Thomas Cromwell (c. 1485-1540),
presidente da Câmara dos Pares sob Henrique VIII, protestante, foi
autorizado a dar prosseguimento a esse empreendimento. Com a aprovação
adicional de Thomas Cranmer (1489-1556), primeiro arcebispo protestante
da Cantuária, Miles Coverdale dispôs-se a preparar um novo texto para ela
e usar o trabalho de outros homens no lugar do seu, publicado havia menos
de dois anos.
Sob a direção de Coverdale, a Grande Bíblia foi oferecida como
meio de acalmar as tensões advindas da situação da Bíblia na Inglaterra.
Ela recebeu seu nome devido ao grande tamanho e formato, pois era maior
que a de qualquer edição anterior e caprichosamente enfeitada. A página de
rosto era uma fina xilogravura atribuída a Hans Holbein, que mostrava
Henrique VIII, Cranmer e Cromwell distribuindo Bíblias ao povo que por
sua vez bradava "Vivat Rex" e "Deus salve o Rei". A Bíblia não continha
nenhuma dedicatória e apresentava apenas prefácios simples. Além disso,
os livros apócrifos foram removidos do restante do texto do Antigo
Testamento e colocados num apêndice intitulado "Hagiógrafa" (escritos
sagrados). A situação ficou extremamente embaraçosa pelo fato de a
maioria dos bispos da igreja ainda ser católica romana. Embora a Grande
Bíblia recebesse autorização para ser lida nas igrejas em 1538, sua posição
delicada ficou mais ameaçada ainda pelo fato de não ser nem uma versão,
nem a revisão de uma versão, mas a revisão de uma revisão.
Bíblia de Cranmer (1540). Em abril de 1540, foi publicada uma
edição especial da Grande Bíblia. Ela trazia um prefácio de Thomas
Cranmer, então arcebispo da Cantuária, e algumas outras revisões baseadas
na obra anterior de Coverdale. A essa seguiram-se cinco outras edições
antes do final de 1541. Essas Bíblias são chamadas "de Cranmer" em razão
do prefácio que ele escreveu para elas. Nesse prefácio encontra-se a
declaração: "Esta é a Bíblia destinada ao uso das igrejas". A Bíblia de 1535
e a Bíblia de Matthew, de 1537, tinham sido permitidas, mas essa era uma
tradução indubitavelmente autorizada, o que a tradução de 1611 nunca
chegou a ser.
Na terceira e na quinta dessas seis edições da Bíblia de Cranmer, um
aviso foi impresso na página de rosto dizendo que os bispos Tunstall e
Heath haviam "supervisionado e examinado" a edição. É uma ironia
curiosa o fato de que Tunstall, quando bispo de Londres, houvesse
condenado Tyndale e sua obra. Agora ele autorizava oficialmente uma
Bíblia que continha em grande parte a tradução de Tyndale e as revisões
dela. Até 1547, a Bíblia de Cranmer atingiu uma policio predominante nas
igrejas. Em 1549 e 1553, foi novamente reimpressa, e a ordem de Cranmer
não foi revogada nem mesmo durante os breves e turbulentos anos do
reinado de Mary Tudor (1553-1558).
Bíblia de Genebra (1557,1560). Durante a perseguição sob o
comando de Mary Tudor, muitos reformadores fugiram para o continente
em busca de segurança. Entre aqueles que se estabeleceram em Genebra
encontravam-se estudiosos e amantes da Bíblia, como Miles Coverdale e
John Knox (c. 1513-1572), os quais produziram uma revisão que viria a
exercer grande influência no povo da Inglaterra. Em 1557, um do grupo,
chamado Guilherme Whittingham, cunhado de João Calvino, produziu
uma revisão provisória do Novo Testamento. Essa foi a primeira vez que o
Novo Testamento em inglês se dividia em versículos, embora tivesse sido
assim dividido no Novo Testamento grego de Estéfano, bem como em
edições anteriores em latim e em hebraico. Longos prólogos foram
acrescentados às traduções, juntamente com súmulas de capítulos e
copiosas notas marginais. Foi introduzido o grifo na tradução para indicar
lugares em que o inglês exigia palavras não encontradas no texto original.
Logo depois do Novo Testamento ter sido publicado em Genebra, foi
iniciado o trabalho de revisar cuidadosamente toda a Bíblia. Em 1560,
foram completados o Antigo Testamento e uma revisão do Novo que
incluíam as mais recentes evidências textuais, e teve início a longa e
movimentada história da Bíblia de Genebra. Em 1644, a Bíblia de
Genebra já havia passado por 140 edições. Ela foi tão popular, que fez
frente à Bíblia dos bispos (1568) e à primeira geração da chamada Versão
autorizada (1611). Foi largamente usada entre os puritanos, citada
repetidamente nas páginas de Shakespeare e usada até mesmo na
mensagem extraída de "Os tradutores aos leitores", na tradução de 1611.
Embora suas anotações fossem mais brandas que as de Tyndale, eram
calvinistas demais tanto para Elizabete I (1558-1603) quanto para Tiago I
(1603-1625).
Bíblia dos bispos (1568). A Bíblia de Genebra não foi patrocinada
pela igreja oficial, mas tornou-se rapidamente a Bíblia de cada casa do
reino. Seu sucesso imediato ocasionou uma nova revisão da Grande Bíblia,
a Bíblia autorizada das igrejas. O trabalho foi confiado a um grupo de
estudiosos que incluía cerca de oito bispos, daí o nome de Bíblia dos
bispos. Eles usariam a Grande Bíblia como ponto de partida para sua
revisão, e, conquanto a intenção fosse a de fazer apenas pequenas
alterações, alguns bispos foram além das instruções recebidas. Os revisores
tinham mais conhecimento do grego do que do hebraico, e seu trabalho no
Novo Testamento é superior ao trabalho efetuado no Antigo.
A Bíblia dos bispos foi publicada em 1568, em Londres, "cum
privilegio regiae majestatis". Sua parte do Novo Testamento foi publicada
em papel mais espesso do que a do Antigo, a fim de suportar o maior uso.
Ela continha dois prefácios, um de Cranmer e um de Matthew Parker,
então arcebispo da Cantuária. Assim como a Grande Bíblia, ela continha
poucas notas nas margens. A convocação de 1571 decretou que fossem
distribuídos exemplares por todo o país, nas casas de cada bispo e
arcebispo, em toda catedral e em toda igreja, se possível. De 1568 a 1611,
essa tradução conciliatória era geralmente encontrada nas igrejas. Não
obstante, a Bíblia de Genebra já havia conquistado os lares do país. Sua
desvantagem insuperável, entretanto, não impediu que a Bíblia dos bispos
fosse usada como base para a famosa revisão de 1611.
As traduções modelares da bíblia em inglês
Enquanto os protestantes se ocupavam em fazer traduções da Bíblia
para a língua da Inglaterra, seus correspondentes católicos romanos
começavam a sentir desejo semelhante. Após a morte de Mary Tudor em
1558, Elizabete I ascendeu ao trono, e os exilados católicos romanos de seu
reino empreenderam uma tarefa semelhante à dos exilados protestantes em
Genebra, durante o reinado de Mary. A multiplicidade e a diversidade das
traduções foi tanta, que quando Tiago i assumiu o trono em 1603, fazia-se
necessária uma tradução mais unificada, para que os vários grupos dentro
da igreja pudessem recorrer a uma autoridade comum em seus debates
teológicos. Em decorrência dos esforços então postos em ação, a Bíblia do
rei Tiago, a mais influente de todas as traduções dos protestantes ingleses,
foi produzida.
A Bíblia de Rheims-Douai (1582,1609)
Em 1568, um grupo de católicos romanos exilados da Inglaterra
fundou a Faculdade Inglesa de Douai, em Flandres. Eles procuravam
treinar sacerdotes e outros que preservassem sua fé católica. William Allen
(1532-1594), cônego de Oxford durante o reinado de Mary Tudor, liderou a
fundação da faculdade e sua mudança para Rheims, na França, quando
surgiram problemas políticos em 1578. Em Rheims, a Faculdade Inglesa
passou à direção de outro estudioso de Oxford, Richard Bristow (1538-
1581), que fora a Douai em 1569. Durante essa época, Allen foi chamado a
Roma, onde fundou outra Faculdade Inglesa e mais tarde passou a cardeal.
Em 1593, a Faculdade Inglesa de Rheims voltou para Douai.
A hierarquia romana desejou uma tradução inglesa da Vulgata latina,
e Allen expressou esse desejo por carta a um professor da faculdade em
Douai, em 1578. Gregory Martin (m. 1582), ainda outro estudioso de
Oxford, empreendeu a tarefa. Martin havia obtido o título de Master of
Arts (MA) em 1564. Nessa época, renunciou ao protestantismo e foi a
Douai para estudar. Em 1570, passou a dar aulas de hebraico e de Escritura
Sagrada. Ele deu prosseguimento à sua tradução do Antigo Testamento ao
ritmo de cerca de dois capítulos por dia até sua morte em 1582. Logo antes
de sua morte, o Novo Testamento foi publicado com muitas notas. Essas
notas foram feitas por Bristow e por Allen. Aos seus esforços aliaram-se os
de outro protestante convertido ao catolicismo, William Reynolds, embora
seu papel na tarefa não seja conhecido com certeza.
Enquanto a tradução de Rheims do Novo Testamento (1582) tivesse
sido projetada para contrapor-se às traduções inglesas protestantes, ela teve
algumas limitações sérias. Foi uma versão fraca do texto para o inglês e se
baseou em outra tradução, e não na língua original do Novo Testamento.
Os tradutores se guardaram "contra a idéia de que as Escrituras deviam
sempre estar na nossa língua materna, ou de que deveriam ser ou foram
ordenadas por Deus para ser lidas indiferentemente por todos". Não apenas
isso, mas os tradutores não esconderam o fato de estarem fazendo um
trabalho polêmico, como mostram suas copiosas notas. O Novo
Testamento foi reeditado em 1600, em 1621 e em 1633.
Entrementes, o Antigo Testamento, que de fato foi traduzido antes do
Novo, teve sua publicação adiada. Limitações financeiras e o aparecimento
de diversas novas edições do texto da Vulgata impediram a publicação da
tradução de Douai doAntigo Testamento até 1609. Sua segunda edição foi
lançada em 1635. A tradução em si foi iniciada por Martin e provavelmente
terminada por Allen e por Bristow, com notas a mente fornecidas por
Thomas Worthington, embora os pormenores sejam tão obscuros, que essas
questões não podem ser precisas com certeza. Ela foi baseada no texto de
Louvain, não oficial, da Vulgata(1547), editado por Henten, mas
conformou-se ao texto sixtino-clementino de 1192. A tradução em si foi
toda uniforme, até no uso ultraliteral dos latinismos. As notas eram
basicamente projetadas para fazer a interpretação do texto harmonizar-se
aos decretos do Concilio de Trento (1546-1563).
O Novo Testamento de Rheims esteve em circulação tempo
suficiente para exercer influência importante nos tradutores da Bíblia
inglesa de 1611. A tradução de Douai do Antigo Testamento, contudo, não
foi publicada a tempo de influenciar esses tradutores. Com uma rainha
protestante no trono e com um rei protestante por sucessor, a Bíblia de
Rheims-Douai tinha pouca possibilidade de competir com as traduções
protestantes já no mercado ou substituí-las, A escassas de reimpressões da
Bíblia de Rheims-Douai revela que os católicos "não temiam que os
poucos exemplares existentes fossem encontrados nas mãos de cada
lavrador". Depois de 1635, foram feitas diversas reimpressões, mas a
segunda edição revisada não surgiu senão em 1749-1750, quando Richard
Challoner, bispo de Londres, deu sua importante contribuição.
A Bíblia do rei Tiago (1611)
Em janeiro de 1604, Tiago I foi convocado a comparecer à
Conferência de Hampton Court em resposta à Petição Milenar que recebeu
ao dirigir-se de Edimburgo para Londres após a morte de Elizabete I. Perto
de mil líderes puritanos haviam assinado uma lista de queixas contra a
igreja da Inglaterra, e Tiago desejava ser o pacificador nesse novo reino,
colocando-se acima de todos os partidos religiosos. Ele tratou os puritanos
com maus modos na conferência, até que John Reynolds, presidente
puritano da Faculdade Corpus Christi, em Oxford, levantou a questão de
ser feita uma versão autorizada da Bíblia para todos os partidos dentro da
igreja. O rei expressou seu apoio à tradução porque o ajudaria a livrar-se de
duas das traduções mais populares e elevar a sua estima aos olhos dos
súditos. Foi nomeada uma junta, à semelhança daquela da Bíblia de
Genebra, que Tiago considerava a pior de todas as traduções existentes.
Ela e a Bíblia dos bispos eram as Bíblias que ele esperava suplantar na
igreja.
Seis grupos de tradutores foram escolhidos: dois em Cambridge para
revisar de 1Crônicas a Eclesiastes e os livros apócrifos; dois em Oxford
para revisar de Isaías a Malaquias, os evangelhos, Atos e o Apocalipse;
dois em Westminster para revisar de Gênesis a 2 Reis e de Romanos a
Judas. Apenas 47 dos 54 homens escolhidos trabalharam de fato nessa
revisão da Bíblia dos bispos. Suas instruções estabeleciam que eles deviam
seguir o texto da Bíblia dos bispos, a menos que notassem que as traduções
de Tyndale, de Matthew, de Coverdale, de Whitchurche e de Genebra
correspondessem mais de perto ao texto original. Esse texto original se
baseou em poucos ou nenhum dos textos superiores dos séculos de XII a
XV, uma vez que seguiu as edições de 1516 e de 1522 do texto grego de
Erasmo, incluindo-se sua interpolação de 1João 5.7. Usar a Bíblia dos
bispos como ponto de partida significava que muitas das antigas palavras
eclesiásticas seriam mantidas na nova revisão. De forma não oficial, a
recente publicação da Bíblia de Rheims-Douai influenciaria a reintrodução
de muitos latinismos no texto.
As notas marginais acompanharam a nova revisão, e a chamada
Versão autorizada nunca chegou a ser de fato autorizada, nem ser de fato
uma versão. Ela substituiu a Bíblia dos bispos nas igrejas porque nenhuma
edição dessa Bíblia foi publicada depois de 1606. Ser lançada no mesmo
formato que a Bíblia de Genebra conferiu à publicação de 1611 maior
influência, assim como para isso contribuiu o uso que fez de expressões
precisas. A longo prazo, a grandeza de sua tradução conseguiu vencer a
competição com a influente Bíblia de Genebra dos puritanos, sua principal
rival. Três edições da nova tradução apareceram em 1611. Outras edições
foram publicadas em 1612, e sua popularidade continuou a exigir novas
impressões. Durante o reinado de Carlos i (1625-1649), o Parlamento
Longo estabeleceu uma comissão para deliberar sobre a revisão da
chamada Versão autorizada ou produzir uma tradução totalmente nova.
Somente revisões insignificantes resultaram em 1629, 1638, 1653, 1701,
1762, 1769 e duas edições posteriores. Essas três últimas revisões foram
feitas pelo dr. Blayney de Oxford. Elas variaram em cerca de 75 mil
pormenores do texto da edição de 1611. Pequenas mudanças continuaram a
surgir no texto até datas recentes como 1967 no texto da Versão autorizada
que acompanha a New Scofield reference edition [Nova edição de
referência de Scofield]. Entrementes, foram feitas tentativas de trazer
amplas alterações e correções às traduções inglesas da Bíblia em virtude de
novas descobertas textuais e por conta da natureza mutável da própria
língua.
20. As traduções da Bíblia para o inglês
moderno
A Bíblia é o livro mais divulgado do mundo. Uma das evidências
mais fortes disso é o grande número de traduções e a variedade de línguas
para as quais já foi traduzida. A Bíblia inteira já foi traduzida para mais de
duzentas línguas, e partes dela aparecem em mais de mil línguas e dialetos.
Essas traduções ilustram amplamente o elo definitivo na cadeia que
provém de Deus para nós, mas nossa principal preocupação e atenção serão
dirigidas à tradução da Bíblia para o inglês. Nosso levantamento estará
centrado nas traduções com base nas Bíblias de Rheims-Douai e do rei
Tiago, de fins do século XV e começos do XVI.
As traduções e as versões católicas romanas
A principal tradução da Bíblia em inglês para os católicos romanos
durante a era da Reforma foi a de Rheims-Douai, de 1582,1609 (v. cap.
19). Ela se impôs lentamente, mas veio a dominar o cenário até 1635;
sendo publicada diversas vezes após essa data. Não obstante, não se tratou
da única tradução católica romana da Bíblia para o inglês.
A Bíblia de Rheims-Douai-Challoner
Embora diversas impressões da Bíblia de Rheims-Douai fossem
feitas após 1635, não foi senão em 1749-1750 que Richard Challoner,
bispo de Londres, publicou a segunda edição revisada. Essa edição foi
pouco mais que uma nova tradução da Bíblia para o inglês, pois aproveitou
diversas melhorias na tradução da Bíblia feitas durante o século XVIII. Em
1718, e.g uma nova tradução do Novo Testamento da Vulgata foi publicada
por Cornelius Nary. Em 1730, Robert Witham, presidente da Faculdade
Inglesa de Douai, publicou uma revisão do Novo Testamento de Rheims.
Esse apresentava certas revisões atribuídas a Challoner, que havia sido
colega de Witham em Douai após sua conversão do protestantismo. Uma
quinta edição do Novo Testamento de Rheims foi publicada em 1738. Ela
continha algumas revisões geralmente atribuídas a Challoner e foi a
primeira edição revisada desse Novo Testamento publicada em mais de um
século (a quarta edição revisada fora publicada em 1633). Em 1749,
Challoner publicou seu Novo Testamento de Rheims revisado, o que fez
novamente em 1750,1752,1763 e 1772. Sua revisão do Novo Testamento
de Douai foi publicada em 1750 e em 1763.
Desde aquele tempo, outras edições da Bíblia de Rheims-Douai
foram publicadas, mas praticamente todas baseadas na revisão de 1749-
1750. Por conseguinte, o padre Hugh Pope observou corretamente que "os
católicos de fala inglesa do mundo todo têm para com o dr. Challoner uma
imensa dívida de gratidão, pois ele lhes forneceu pela primeira vez uma
versão portátil, econômica e de fácil leitura, que, a despeito de uns poucos
defeitos inevitáveis, suportou o teste de duzentos anos de uso".23 Tem
havido tantas revisões e edições dessa Bíblia de Challoner, que ela difere
muito da Bíblia original de Rheims-Douai, já não sendo correto identificar
essa obra pelo nome da sua predecessora. E, por sinal, a tradução que
Challoner fez da Bíblia.
A Bíblia da Confraria de Doutrina Cristã
A primeira Bíblia católica romana dos Estados Unidos (1790) foi
uma grande edição in-quarto do Antigo Testamento de Douai e uma
mistura de diversas revisões de Challoner combinadas com a edição de
1752 do texto do Novo Testamento de Rheims-Challoner. Essa Bíblia foi
na realidade a primeira Bíblia in-quarto de qualquer espécie em inglês a
ser publicada na América do Norte. De 1849 a 1860, Francis Patrick
Kenrick fez uma nova revisão da Bíblia de Challoner em seis volumes,
embora alegasse ter feito sua tradução da Vulgata latina, após compará-la
diligentemente com os textos hebraicos e gregos. Dessa época em diante,
outras edições apareceram nos dois lados do Atlântico.
Em 1936, teve início uma nova revisão do Novo Testamento de
Rheims-Douai sob os auspícios da Junta Episcopal da Confraria de
Doutrina Cristã. Foi nomeada uma junta de 28 estudiosos, para que
23 Ap. Luther A. WEIGLE, English versions since 1611, in: The Cambridge history of the Bible, New
York, Cambridge University Press, 1963, p, 367, v. 3.
trabalhassem na revisão sob a direção de Edward P. Arbez. O texto usado
como base foi o da Vulgata latina, mas foram aproveitadas as melhorias
recentes advindas das pesquisas de estudiosos da Bíblia. Muitas das
expressões arcaicas das revisões anteriores foram eliminadas, como
também muitas das copiosas notas. O texto foi organizado em parágrafos, e
foi empregada a ortografia americana. A gráfica St. Anthony Guild Press
publicou o Novo Testamento da Confraternidade em 1941, que foi
prontamente adotado pelos católicos de fala inglesa em todo o mundo em
decorrência da Segunda Guerra Mundial.
O papa Pio XII publicou a encíclica Divino afflante Spiritu (1943)
declarando que as traduções da Bíblia podiam basear-se nos textos
originais em hebraico e em grego, e não apenas na Vulgata latina. Essa foi
uma brusca inversão na posição tomada pelos tradutores da Bíblia de
Rheims-Douai (v. cap. 19). Após as restrições do tempo da guerra terem
caído, a Confraria começou a publicar uma nova versão do Antigo
Testamento Ao contrário de qualquer tradução feita por católicos em mais
de um milênio e meio, essa seria baseada nas línguas originais e não em
alguma tradução latina anterior. Até 1967, os quatro volumes foram
concluídos e publicados. Começou-se a trabalhar, então, sob a direção de
Louis F. Hartman, numa nova versão do Novo Testamento. Em 1970 a New
American Bible [Nova Bíblia americana] foi publicada. Ela baseava-se nos
mais recentes aperfeiçoamentos da crítica literária e foi traduzida
diretamente dos textos hebraicos e gregos.
A tradução de Knox
Da mesma forma que a Bíblia da Confraria de Doutrina Cristã é a
Bíblia católica romana oficial dos Estados Unidos, a tradução de Knox é a
Bíblia católica romana oficial da Grã-Bretanha. Ela foi solicitada por
Ronald A Knox em 1939, quando ele, recém-convertido ao catolicismo
romano, pro-pôs à hierarquia inglesa a produção de uma nova tradução.
Embora uma nova tradução para o inglês tivesse sido publicada em 1935
(Versão de Westminster das Escrituras Sagradas), e um novo texto da
Vulgata latina viesse a lume em 1945, depois da encíclica do papa Pio XII,
em 1943, monsenhor Knox não incorporou esses materiais no seu Novo
Testamento (1945), nem nas traduções do Antigo Testamento (1949). Em
vez disso, baseou suas traduções no texto da Vulgata sixtino-clementina de
1592. Contudo em 1955, a hierarquia romana deu sua sanção oficial à
tradução de Knox para os católicos de língua inglesa. Desde o início, a
tradução de Knox repousa sobre um alicerce muito mais fraco que o da
versão da Confraria Americana sua sucessora, a Nova Bíblia americana.
Essas são baseadas em mais recentes evidências de manuscritos, bem como
nos textos das línguas originais. Além disso, a tradução de Knox traz textos
e traduções inferiores aos da Versão de Westminster das Sagradas
Escrituras, que permanece obra não-oficial.
As traduções católicas em linguagem moderna
A posição inicial da Igreja Católica Romana para com a publicação
das Escrituras por leigos foi longe de entusiasta. O papa Pio IX condenou
as sociedades bíblicas de seitas pestilentas em seu famoso Sílabo de erros
(1864), cerca de sessenta anos após a fundação da Sociedade Bíblia
Britânica e Estrangeira, em 1804. Ele refletia a atitude da hierarquia
católica romana em geral, mas havia quem achasse que a Bíblia deveria ser
colocada nas mãos dos leigos católicos. Foi já em 1813, e.g., que um grupo
entusiasta de membros da igreja fundou a Sociedade Bíblica Católica
Romana e publicou a Bíblia de Rheims-Douai sem notas. Em 1815, o
mesmo grupo publicou outra edição melhorada da mesma tradução.
Entrementes, apareceu um bom número de edições da Bíblia para os
católicos romanos, dentre as quais a Bíblia de Coyne (1811), a Bíblia de
Haydock (1811-1814), o Novo Testamento de Newcastle (1812), a Bíblia de
Syer (1813-1814), a Bíblia de MacNamara (1813-1814), o Novo
Testamento de Bregan (1814) e a Bíblia de Gibson (1816-1817). Outras
Bíblias foram publicadas durante todo o século XIX, tanto na Inglaterra
quanto nos Estados Unidos. Em 1901, uma admirável versão dos
evangelhos foi publicada pelo padre dominicano Francis Spencer. Ele
completou o restante do Novo Testamento logo antes de sua morte, em
1913, mas essa obra só foi publicada em 1937. O Novo Testamento do
leigo foi publicado pela primeira vez em Londres, em 1928. Continha o
texto de Challoner do Antigo Testamento, na página esquerda, e notas
polêmicas, na direita. Em 1935, uma excelente nova versão do Novo
Testamento foi publicada sob a supervisão editorial de Cuthbert Lattey, S.J.
Essa Versão de Westminster das Sagradas Escrituras se baseou nas línguas
originais do Novo Testamento, mas não recebeu a sanção oficial da
hierarquia católica romana. Seguindo os mesmos princípios, o primeiro
fascículo do Antigo Testamento foi publicado. O trabalho continuou, mas
demorou a ser concluído por conta da morte de Lattey, em 1954. Por causa
da posição da tradução de Knox, é difícil imaginar que a Versão de
Westminster receberá reconhecimento oficial da igreja.
Uma versão completamente americanizada do Novo Testamento
surgiu em 1941 como o primeiro fascículo da Versão da Confraria de
Doutrina Cristã. Em 1956, James A. Kliest e Joseph L. Lilly publicaram
mais outra tradução intitulada Novo Testamento traduzido do grego
original com notas explicativas. Provavelmente a mais importante tradução
recente nessa categoria produzida por estudiosos católicos romanos é A
Bíblia de Jerusalém. Embora seja traduzida dos textos originais, ela deve
muito à La Bible de Jerusalém (1961), cuja introdução e notas foram
traduzidas sem variação substancial, diretamente para o texto inglês. Essas
notas representam 0 trabalho da ala "liberal" dos estudiosos católicos da
Bíblia, embora a tradução em si seja basicamente literal e contemporânea
em estilo.
As traduções e as versões judaicas
Embora os judeus tenham buscado preservar o estudo da Escritura
em sua língua original (o hebraico), nem sempre têm conseguido atingir
esse objetivo. Eles encontraram os mesmos problemas enfrentados pelos
católicos romanos e pela Bíblia latina, como mostra a própria existência da
Septuaginta (LXX). Já no século III a.C, os judeus viram a necessidade de
traduzir sua Bíblia para a língua falada em Alexandria. A tradução de partes
do Antigo Testamento para o aramaico atesta mais ainda o fato de eles nem
sempre conseguirem estudar a Bíblia na língua hebraica.
Durante toda a Idade Média, as condições sob as quais os judeus
viveram não favoreciam nenhum tipo de estudo. Aposição da igreja quanto
ao papel deles na crucificação de Cristo tornou-lhes mais difícil ainda
participar abertamente dos estudos da Bíblia. Não obstante, em torno de
1400, eles começaram a fazer traduções novas e diferentes do Antigo
Testamento para várias línguas. Não foi senão cerca de quatrocentos anos
depois dessas primeiras traduções, contudo, que os judeus começaram a
traduzir o Antigo Testamento para o inglês.
Em 1789, o ano da Revolução Francesa, surgiu uma versão judaica
do Pentateuco que declarava ser uma emenda à Bíblia do rei Tiago. Em
1839, um trabalho parecido foi publicado por Salid Neuman. Entre 1851 e
1856, o rabino Benisch produziu uma Bíblia completa para os judeus de
fala inglesa. Uma tentativa final de emendar a Bíblia do rei Tiago para uso
dos judeus foi feita por Michael Frielander em 1884.
Em 1853, Isaac Leeser afastou-se notavelmente da tradição ao
produzir sua versão de A Bíblia hebraica, uma Bíblia que vinha sendo
preferida nas sinagogas inglesas e americanas havia muito tempo. Antes da
virada do século, entretanto, o caráter insatisfatório do trabalho de Leeser
foi detectado, e a Sociedade Bíblica Judaica resolveu revisá-lo durante sua
segunda convenção bienal de 1892. À medida que o trabalho de revisão
continuava, tornou-se notório que ela teria de ser praticamente uma
tradução de todo nova. Após tempo considerável gasto na reorganização do
projeto, a Sociedade Judaica de Publicação finalmente lançou sua nova
versão da Bíblia hebraica. Publicada em 1917, essa revisão seguiu de perto
a Versão padrão americana (ASV) (1901).
A Sociedade Judaica de Publicação não parou seu trabalho com a
publicação de 1917. Após o lançamento da Versão padrão revisada (RSV) e
a atividade para publicar a Afora Bíblia inglesa (NEB), ela começou a
trabalhar na publicação de uma nova tradução do Antigo Testamento. Em
1962, publicou a Tora e em 1969 lançou os Megüloth. Essas duas versões
são baseadas no Texto massorético do Antigo Testamento. Por sinal, o
título completo da publicação de 1962 é esclarecedor nesse aspecto: Tora:
uma nova tradução das Santas Escrituras segundo o Texto massorético.
Ela não reivindica ser uma nova versão, e seu prefácio respalda o título ao
declarar que tem o propósito de "aperfeiçoar substancialmente as versões
anteriores ao traduzir tanto as nuanças quanto os significados das palavras
e das expressões, sem deixar de levar em conta a força das formas e das
construções gramaticais". A fim de realizar sua tarefa, os tradutores
utilizaram percepções negligenciadas dos estudiosos judaicos antigos e
medievais, bem como novos conhecimentos do Oriente Próximo.
As traduções e as versões protestantes
Seguindo o princípio da Reforma de interpretação particular, os
protestantes produziram um número maior de traduções particulares da
Bíblia do que os católicos romanos. Algumas das primeiras traduções
derivaram das descobertas de novos materiais manuscritos, visto que
nenhum dos grandes manuscritos tinha sido descoberto na época da
tradução do rei Tiago (v. cap. 14), exceto o Códice Beza (D), muito pouco
usado. Antes de examinar essas traduções particulares, devemos deter-nos
em algumas das tentativas oficiais de fazer a Bíblia do rei Tiago alinhar-se
com as descobertas dos manuscritos.
A Bíblia inglesa revisada
Todas as revisões da Bíblia do rei Tiago mencionadas no capítulo 19
foram feitas sem autorização oficial eclesiástica ou real. Aliás, nenhuma
revisão oficial dessa Bíblia foi apresentada por mais de um século depois
do trabalho do dr. Blayney (1769). Algumas das revisões que chegaram a
ser publicadas foram de imprudentes, com adições como a cronologia de
Ussher. Não obstante, houve algumas revisões excelentes de caráter nãooficial,
como no caso de uma edição anônima de A Bíblia Sagrada
contendo a Versão autorizada do Antigo e do Novo Testamento, com muitas
emendas (1841). No prefácio dessa revisão não-oficial da Bíblia do rei
Tiago, o autor menciona ter usado manuscritos ainda não disponíveis em
1611.
Com as melhorias entre os estudiosos da Bíblia durante o século
XIX, incluindo-se o acúmulo de manuscritos mais antigos e melhorei, com
as descobertas arqueológicas no mundo antigo como um todo e com as
descobertas arqueológicas no mundo antigo como um todo e com as muitas
mudanças na sociedade inglesa e na sua língua, a revisão da Bíblia do rei
Tiago de caráter mais "oficial" tornava-se obrigatória. Antes que isso
pudesse ser realizado, entretanto, um grupo de estudiosos notáveis
publicou a Edição variorum do Novo Testamento de nosso Senhor e
Salvador Jesus (1880). Os organizadores dessa obra, R. L. Clark, Alfred
Goodwin e W. Sanday, fizeram essa revisão por "ordem especial de sua
majestade". Eles tiveram a tarefa de revisar a Bíblia do rei Tiago à luz das
várias leituras das melhores autoridades em textos. Por conseguinte, a
Bíblia variorum seguiu a tradição de Tyndale, de Coverdale, da Grande
Bíblia, da Bíblia de Genebra, da Bíblia dos bispos e das várias edições da
Bíblia do rei Tiago. Além disso, contudo, ela preparou o caminho para a
Bíblia inglesa revisada.
O desejo muito difundido de uma revisão plena da Bíblia autorizada
resultou numa convocação da Província da Cantuária em 1870. Samuel
Wilberforce, bispo de Winchester, propôs revisar o Novo Testamento em
que os textos gregos revelassem traduções inexatas ou incorretas no texto
do rei Tiago. O bispo Ollivant ampliou a proposta e incluiu o Antigo
Testamento e os textos hebraicos. Por conseqüência, dois grupos foram
nomeados. Originariamente havia 24 membros em cada grupo, mas foram
mais tarde ampliados para cerca de 65 revisores de diversas denominações.
Esses grupos começaram a trabalhar em 1871, e em 1872 um grupo de
estudiosos americanos foi convidado a participar do empreendimento em
caráter consultivo. As editoras das Universidades de Oxford e de
Cambridge assumiram os custos do projeto sob a condição de lhes serem
dados privilégios autorais exclusivos do produto pronto. Mais de três
milhões de exemplares da revisão foram vendidos nos Estados Unidos e na
Grã-Bretanha em menos de um ano. O Antigo Testamento foi lançado em
1885, os livros apócrifos em 1896 (1898 nos Estados Unidos) e a Bíblia
completa foi publicada em 1898. Embora o texto da revisão fosse muito
mais exato que o da Bíblia do rei Tiago, levaria diversas gerações para que
as alterações nas palavras e nos ritmos fossem aceitas.
Parte da tradução da Bíblia inglesa revisada não satisfez
completamente a junta americana de revisão, mas seus membros haviam
concordado em não dar por catorze anos "nenhuma sanção à publicação de
qualquer outra edição da Versão revisada que não fosse a publicada pelas
editoras daquelas universidades inglesas". Em 1901, foi publicada a Edição
padrão americana da Versão revisada, denunciando a existência de
algumas, edições não-autorizadas ou não-padronizadas dessa versão,
publicadas antes daquela época. Outras revisões foram feitas pela junta
americana, como a mudança dos nomes "Senhor" para "Jeová" e "Holy
Ghost" [Espirito Santo] para "Holy Spírit" [Espírito Santo], As estruturas
dos parágrafos foram revisadas e abreviadas, e breves cabeçalhos foram
acrescentados. Aos poucos, a Versão padrão americana (ASV) ganhou
aceitação nos Estados Unidos e começou até a ser importada pela Grã-
Bretanha.
Como a sua equivalente inglesa, a ASV perde a beleza da Bíblia do rei
Tiago, mas suas interpretações mais corretas têm-na tornado muito
aceitável por parte de professores e estudantes da Bíblia. Em 1929, os
direitos autorais passaram para o Concilio Internacional de Educação
Religiosa, que fez nova revisão do texto. Como as traduções anteriores,
que erigiam seu trabalho sobre o alicerce deixado por William Tyndale, a
ASV foi a obra de muitas mãos e diversas gerações.
A Bíblia padrão revisada
Meio século depois que a revisão inglesa da Bíblia do rei Tiago foi
publicada, o Concilio Internacional de Educação Religiosa expressou seu
desejo de utilizar as grandes melhorias advindas recentemente dos
estudiosos da Bíblia. O texto deWestcott e de Hort do Novo Testamento (v.
cap. 14) fora incisivamente modificado por conta das descobertas de
papiros e de novos manuscritos. Ademais, o estilo e o gosto literário da
língua inglesa continuavam a mudar, de modo que uma nova revisão se
considerou necessária. Em 1937, o Concilio Internacional autorizou uma
junta a empreender essa revisão.
A junta da revisão se constituiu de 22 estudiosos notáveis que
deveriam seguir o significado da Versão padrão americana (RSV), a menos
que dois terços da junta concordassem em mudar a interpretação. Foram
usados como parâmetros o emprego das formas mais simples e mais atuais
dos pronomes, salvo em referência a Deus, e também a ordem mais direta
das palavras. Atrasado pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Novo
Testamento não surgiu senão em 1946, com o Antigo sendo publicado em
1952 e os livros apócrifos em 1957. Essas publicações foram lançadas após
tremenda campanha de publicidade que pôs em movimento reações quase
previsíveis. Em contraposição à Versão padrão americana, a Versão
padrão revisada foi acusada de velar passagens messiânicas tradicionais,
como no caso da substituição de "virgem" por "uma jovem", em Isaías
7.14. As críticas ao Novo Testamento não foram tão contundentes, embora
fossem contundentes o bastante. Não obstante todas as críticas, a Versão
padrão revisada fornece à igreja de fala inglesa uma revisão atualizada da
Bíblia baseada no "texto crítico" (v. cap. 14).
A Nova Bíblia Inglesa
Não satisfeita com a idéia de que a Versão padrão revisada fosse
uma continuação da antiga tradição das primeiras traduções da Bíblia
inglesa, a Assembléia Geral da Igreja da Escócia reuniu-se em 1946 a fim
de deliberar sobre uma tradução completamente nova. Uma junta comum
foi designada em 1947, e três grupos foram escolhidos: um para o Antigo
Testamento, um para o Novo e um para os livros apócrifos. C. H. Dodd foi
nomeado presidente do grupo especializado em Novo Testamento e em
1949 foi nomeado diretor de toda a tradução. O Novo Testamento da Nova
Bíblia inglesa surgiu em 1961, com o Antigo Testamento e os livros
apócrifos sendo publicados em 1970.
Os princípios de tradução da Nova Bíblia inglesa buscaram
apresentar um idioma inglês que fosse "perpétuo", evitando tanto os
anacronismos quanto os modernismos efêmeros. Os tradutores procuraram
tornar essa versão simples o suficiente para transmitir seu significado sem
ser árida nem vulgar, pois esperavam produzir uma tradução que fosse uma
segunda versão fidedigna, a par da Bíblia do rei Tiago.
Mais de quatro milhões de exemplares da Nova Bíblia inglesa foram
vendidos durante o primeiro ano de publicação. Diferindo bastante tanto da
Versão inglesa revisada quanto da Versão padrão revisada, que a
precederam, seus tradutores freqüentemente deixavam de lado as traduções
literais do texto, especialmente quando achavam que o texto permitia duas
possíveis interpretações. Além disso, a Nova Bíblia inglesa tem sido
criticada por seus anglicismos e por sua concentração sobre a
inteligibilidade e não sobre a literalidade do significado, bem como pela
reorganização crítica de algumas seções do Antigo Testamento. Isso
indubitavelmente reflete a influência da teologia contemporânea por
intermédio dos tradutores. Considerando-se todas as coisas, entretanto,
essa tradução continuou a tradição de seus antepassados ingleses e é uma
obra valiosa em si mesma.
A Nova Bíblia padrão americana
Durante a década de 1960, tentou-se fazer mais uma revisão da
Versão padrão americana. Esse esforço foi empreendido pela Fundação
Lockman, na tentativa de reviver bem como revisar aquela versão. A junta
de tradução declarou seu propósito quádruplo no prefácio que acompanha
o Novo Testamento (1963). Em 1970, a Bíblia toda foi publicada seguindo
0 mesmo objetivo quádruplo. Eles buscaram ser fiéis aos textos hebraicos e
gregos originais, ser gramaticalmente corretos, ser compreensíveis para as
massas e dar o devido lugar ao Senhor Jesus Cristo.
Os tradutores da Nova Bíblia padrão americana (NASV) tentaram
renovar a Versão padrão americana, a "rocha da veracidade bíblica".
Embora não tenham chegado aos pés da obra literária de outras versões
modelares no processo de tradução, produziram uma herdeira útil e fiel da
Versão padrão americana. Outra tradução mais ou menos oficial foi
recentemente efetuada sob os auspícios da Sociedade Bíblica de Nova
Iorque. Intitula-se Bíblia Sagrada: nova versão internacional. A parte do
Novo Testamento foi lançada em 1973, e o Antigo Testamento está previsto
para 1976.*
As traduções dos séculos XVIII e XIX
Ao lado das traduções apresentadas acima, houve a publicação de
bom número de traduções e de versões não-oficiais. Em 1703, e.g., Daniel
Whitby editou uma Paráfrase e comentário do Novo Testamento. Edward
Wells veio em seguida com um texto revisado da Bíblia do rei Tiago
chamado As traduções comuns corrigidas (1718-1724). Em 1745, William
Whiston, conhecido por sua tradução de Josefo, publicou um Novo
Testamento primitivo e John Wesley fez cerca de 12 000 mudanças no texto
da Bíblia autorizada. Edward Horwood fez uma Tradução liberal do Novo
Testamento em 1768 para completar as traduções do século XVIII.
Durante o século XIX, esforços para traduzir o Antigo Testamento
começaram a aparecer com maior freqüência. O primeiro deles foi A Bíblia
septuaginta, publicada por Charles Thompson em 1808. Em 1844,
Lancelot Brenton lhe deu continuidade publicando sua Versão septuaginta
do Antigo Testamento. O estudioso Samuel Sharpe, adepto do unitarismo,
publicou seu Novo Testamento em 1840 e seu Antigo Testamento em 1865.
Entrementes, Robert Young produziu sua Tradução literal da Bíblia
(1862), e Dean Alford publicou seu Novo Testamento grego e uma revisão
da Bíblia autorizada em 1869. John Nelson Darby, líder dos Irmãos
Plymouth, publicou uma Nova tradução da Bíblia (1871,1890), enquanto
Joseph Bryant Rotherham publicava A Bíblia realçada (1872, 1902).
Thomas Newberry editou A Bíblia do inglês durante a década de 1890. Um
dos mais conhecidos exemplos de traduções de trechos da Bíblia aparece
na vida e as epístolas de São Paulo, de W. J. Conybeare e J. S. Howson
(1964), em que a tradução está embutida num comentário.
* O texto inglês já se acha devidamente concluído. Ademais, a Sociedade Bíblica Internacional
presenteou os falantes do português com o Novo Testamento (1993) da Nova versão internacional e
trabalha com afinco com vistas no lançamento do Antigo. (N. Do E.)
As Traduções do século XX
A grande profusão de traduções da Bíblia em inglês não ocorreu
senão neste século, quando os grandes manuscritos haviam sido
descobertos, o sentimento público procurava traduções coloquiais,
tentativas estavam sendo feitas de empreender traduções oficiais e mais
evidências dos textos foram descobertas. Desde então praticamente tem
havido um desfile de estudiosos e de suas traduções. Arthur S. Way,
estudioso clássico, abriu o desfile com sua tradução de As cartas de Paulo
(1901). O ano seguinte já testemunhou a publicação do Novo Testamento
do século XX, baseado no texto de Westcott e de Hort. Um estudioso
consultado para essa tradução, Richard Francis Weymouth, traduziu O
testamento grego resultante, que foi publicado postumamente, em 1903, e
minuciosamente revisado por James A. Robertson, em 1924.
Talvez o empreendimento mais ambicioso de um só homem tenha
sido A Bíblia Sagrada em inglês moderno (1895,1903), por Ferrar Fenton.
Ela se baseou em manuscritos hebraicos, caldeus e gregos. James Moffat,
estudioso de Oxford, publicou O Novo Testamento (1913) e O Antigo
Testamento (1924), que depois combinou em Uma nova tradução da Bíblia
(1928). A obra de Moffat é caracterizada por seu tom escocês, liberdade de
estilo e de linguagem e sua tendência teológica modernista. O equivalente
americano de Moffat aparece em A Bíblia completa: uma traduçUo
americana (1927), de Edgar J. Goodspeed. G. W. Wade apresentou uma
nova tradução organizada no que ele acreditava ser a ordem cronológica
dos livros em Os documentos do Novo Testamento (1934). A Versão
concordante das Sagradas Escrituras (1926ss.) baseou-se no princípio de
que toda palavra do original deveria ter equivalente inglês. Em 1937,
Charles B. Williams publicou o Novo Testamento na linguagem do povo,
no qual tentou transmitir o significado exato dos tempos verbais do grego
para o inglês. Durante esse mesmo ano, Paulo visto das trincheiras, de
Gerald Warre Cornish, foi publicado postumamente. W. C. Wand produziu
As cartas do Novo Testamento em 1943, no formato de um bispo
escrevendo uma carta mensal à sua diocese. Em outra tentativa de fazer a
Bíblia chegar às mãos dos leigos, J. H. Hooks atuou como presidente de
uma junta que traduziu a Bíblia inglesa básica (1940-1949), fazendo uso
de apenas mil palavras "básicas" do inglês. Charles Kingsley William
tentou fazer obra semelhante nO Novo Testamento: uma tradução em
simples (1952).
Uma tentativa conservadora de produzir o equivalente da Versão
padrão revisada foi produzida sob a direção de Gerrit Verkuyl, de
Berkeley, na Califórnia. Essa tradução da Bíblia foi intitulada Versão de
Berkeley em inglês moderno (1945,1959) e, mais recentemente, Bíblia em
linguagem moderna (1971). Em 1969 essa obra foi revisada e publicada
como Bíblia Sagrada: a nova versão de Berkeley em inglês moderno. Após
lançar diversos fascículos, J. B. Phillips publicou o Novo Testamento em
inglês moderno (1958).* Sua paráfrase era muito diferente das publicações
dos testemunhas-de-jeová: a Tradução do novo mundo das Escrituras
cristãs gregas (1950) e a Tradução do novo mundo das Escrituras
hebraicas (1953), que traziam o nome da Sociedade Torre de Vigia de
Bíblias e Folhetos. Um ilustre estudioso judeu, Hugh J. Schonfield, tentou
reconstruir a "legítima" atmosfera judaica do Novo Testamento para os
leitores gentios nO Novo Testamento legítimo (1955).
George M. Lamsa fez sua A Bíblia Sagrada a partir de antigos
manuscritos ocidentais (1933-1957), dos manuscritos da Siríaca peshita (v.
cap. 16) e não dos manuscritos gregos. Kenneth S. Wuest sucedeu a J. B.
Phillips na publicação de sua Tradução ampliada do Novo Testamento, em
diversos fas-cículos antes de ser definitivamente combinada em 1959. Sua
obra, juntamente com a publicação de A Bíblia ampliada (1958,1964), da
Fundação Lockman, seguiu a tradição de Charles B. Williams. A propósito,
A Bíblia ampliada é quase um comentário.
Em 1961, Olaf M. Norlis publicou O Novo Testamento simplificado
em inglês comum, e R. K. Harrison traduziu os Salmos para hoje para
acompanhá-lo. Um ano depois, Kenneth Taylor começou a publicar partes
da Bíblia viva como paráfrase. A tradução completa da Bíblia viva foi
publicada em 1971, e tem tido circulação incrivelmente ampla nos milhões
de exemplares vendidos. Entrementes, F. F. Bruce aumentou essa tradição
de traduções parafraseadas publicando As cartas de Paulo: uma paráfrase
ampliada (1965). A Sociedade Bíblica Americana publicou sua Boas novas
para o homem moderno, também conhecida como Novo Testamento na
linguagem de hoje, em 1966. Até 1868, mais de dez milhões de exemplares
tinham sido vendidos, e em 1971 essa publicação já está em sua terceira
edição. Além do Novo Testamento, as Boas novas para o homem moderno
(TEV) já incluíram partes do Antigo Testamento, dentre as quais Salmos, Jó
* Há desse tradutor em português a obra Cartas para hoje (Vida Nova, 1993). (N. do E).
e Provérbios.**
As traduções e às versões ecumênicas
Com a grande profusão de Bíblias católicas romanas, judaicas e
protestantes sendo publicadas, era inevitável que numa era ecumênica
houvesse tentativas de produzir Bíblias ecumênicas.
O Novo Testamento: edição católica da versão padrão revisada
(1965) encaixa-se nessa categoria. Embora seja realmente o texto da
Versão padrão revisada, com cerca de 24 mudanças básicas (enumeradas
no apêndice) e notas acrescentadas, ela foi oficialmente aprovada para uso
dos católicos romanos. Entre algumas das mudanças nos textos estão a
mudança de "brothers" ("irmãos", usado em linguagem geral) para
"brethren" ("irmãos", usado em linguagem formal), nas referências feitas à
família de Jesus (Mateus 12.46,48), e "deixá-la" em vez de "divorciar-se
dela", com referência a José e a Maria (Mateus 1.19); o acréscimo de "e
jejum" a "oração", em Marcos 9.29; bem como a reintegração do longo
final do evangelho de Marcos (16.9-20) e o incidente da mulher apanhada
em adultério em João 7.58— 8.11 (v. cap. 15).
A primeira tentativa feita por uma junta ecumênica unida de produzir
uma Bíblia comum é A Bíblia âncora (1964). Sob a direção editorial de
William F. Albright e de David Noel Freedman, ela se diz internacional e
interdenominacional em sua abrangência. Especificamente afirma contar
entre os tradutores muitos estudiosos protestantes, católicos e judeus de
muitos países. Seu esforço é o de oferecer a todos os povos de fala inglesa
todo o conhecimento significativo, histórico e lingüístico, que influencia a
interpretação dos registros bíblicos. Ela está sendo produzida em volumes
separados, sendo que cada um deles será acompanhado de uma introdução
completa e de notas.
A edição revisada da Versão padrão revisada foi publicada como
parte do Novo Testamento dA Bíblia comum, em 1973. Embora seja cedo
demais para estimar o valor dessa tradução ou de seu sucesso como
empreendimento ecumênico, é difícil ver como possa manter a sua
unidade, visto que cada livro está sendo produzido por estudiosos de tão
** Essa versão já se encontra completa em inglês sob o título Today's English version equivale a A
Bíblia na linguagem de hoje, da Sociedade Bíblica do Brasil. (N. do E.).
variadas perspectivas teológicas e culturais. Mesmo que a unidade seja
mantida, conjectura-se que efeito as diversidades teológicas terão sobre a
unidade total da mensagem bíblica.
Mesmo olhando de relance, entretanto, essa procissão de traduções
modernas é suficiente para revelar que o século xx, como nenhum século
antes na história humana, possui a maior proliferação de traduções da
Bíblia, tanto num esforço oficial quanto não-oficial. Com essa grande
diversidade e multiplicação das traduções vem uma responsabilidade maior
do que nunca de compreender e transmitir todo o conselho de Deus contido
em seu Livro inspirado.
21. As traduções para o português
Neste capítulo procuraremos apresentar um breve histórico da
tradução da Bíblia em português, tanto em Portugal quanto no Brasil.*
Período das traduções parciais
"Venturoso" ou "Bem-Aventurado". A despeito de esse título ter sido
atribuído a d. Manuel como o principal incentivador das grandes
navegações, mais bem-aventurado que esse rei português foi um de seus
antecessores, d. Diniz (1279-1325), por ter sido a primeira pessoa a
traduzir para a língua portuguesa o texto bíblico, tornando assim possível a
futura grande navegação dos leitores de língua portuguesa pelo imenso mar
da Palavra de Deus.
Grande conhecedor do latim clássico e leitor da Vulgata, d. Dinis
resolveu enriquecer o português traduzindo as Sagradas Escrituras para o
nosso idioma, tomando como base a Vulgata latina. Embora lhe faltasse
perseverança e só conseguisse traduzir os vinte primeiros capítulos do livro
de Gênesis, esse seu esforço o colocou em uma posição histórica-mente
anterior a alguns dos primeiros tradutores da Bíblia para outros idiomas,
como João Wycliffe por exemplo, que só em 1380 traduziu as Escrituras
* Este capítulo foi extraído da Bíblia de referência Thompson com algumas adaptações, O texto é da
autoria de Jefferson Magno Costa e Abraão de Almeida.
para o inglês.
Fernão Lopes afirmou em seu curioso estilo de cronista do século
XV, que d. João I (1385- 1433), um dos sucessores de d. Diniz ao trono
português, fez grandes letrados tirar em linguagem os Evangelhos, os Atos
dos Apóstolos e as epístolas de Paulo, para que aqueles que os ouvissem
fossem mais devotos acerca da lei de Deus (Crônica de d. João I, segunda
parte). Esses "grandes letrados" eram vários padres que também se
utilizaram da Vulgata latina em seu trabalho de tradução.
Enquanto esses padres trabalhavam, d. João I, também conhecedor
do latim, traduziu o livro de Salmos, que foi reunido aos livros do Novo
Testamento traduzidos pelos padres. Seu sucessor, d. João II, outro grande
defensor das traduções do texto bíblico, mandou gravar no seu cetro a parte
final do versículo 31 de Romanos 8: "Se Deus é por nós, quem será contra
nós?", atestando assim quanto os soberanos portugueses reverenciavam a
Bíblia.
Como nessa época a imprensa ainda não havia sido inventada, os
livros eram produzidos em forma manuscrita fazendo-se uso de folhas de
pergaminho. Isso tornava sua circulação extremamente reduzida. Por ser
trabalho lento e caro, era necessário que ou a Igreja Romana ou alguém
muito rico assumisse os custos do projeto. Ninguém mais indicado para
isso que os nobres e os reis.
Outras figuras da monarquia de Portugal também realizaram
traduções parciais da Bíblia. A neta do rei d. João I e filha do infante d.
Pedro, a infanta d. Filipa, traduziu do francês os evangelhos. No século XV
surgiram publicados em Lisboa o evangelho de Mateus e trechos dos
demais evangelhos, trabalho realizado pelo frei Bernardo de Alcobaça, que
pertenceu à grande escola de tradutores portugueses da Real Abadia de
Alcobaça. Ele baseou suas traduções na Vulgata latina.
A primeira harmonia dos evangelhos em língua portuguesa,
preparada em 1495 pelo cronista Valentim Fernandes e intitulada De Vita
Christi, teve os seus custos de publicação pagos pela rainha dona Leonora,
esposa de d. João II. Cinco anos após o descobrimento do Brasil, d. Lenora
mandou também imprimir o livro de Atos dos Apóstolos e as epístolas
universais de Tiago, de Pedro, de João e de Judas, que haviam sido
traduzidos do latim vários anos antes por frei Bernardo de Brinega.
Em 1566 foi publicada em Lisboa uma gramática hebraica para
estudantes portugueses. Ela trazia em português, como texto básico, o livro
de Obadias.
Outras traduções
Outras traduções em língua portuguesa, realizadas em Portugal, são
dignas de menção:
Os quatro evangelhos, traduzidos em elegante português pelo padre
jesuíta Luiz Brandão.
No inicio do século XIX, o padre Antônio Ribeiro dos Santos
traduziu os Evangelhos de Mateus e de Marcos, ainda hoje inéditos.
É fundamental salientar que todas essas obras sofreram, ao longo dos
séculos, implacável perseguição da Igreja Romana, e de muitas delas só
escaparam um ou dois exemplares, hoje raríssimos. A Igreja Romana
também amaldiçoou a todos os que conservassem consigo essas "traduções
da Bíblia em idioma vulgar", conforme as denominavam.
Período das traduções completas
Tradução de Almeida
Coube a João Ferreira de Almeida a grandiosa tarefa de traduzir pela
primeira vez para o português o Antigo e o Novo Testamento. Nascido em
1628, em Torre de Tavares, nas proximidades de Lisboa, João Ferreira de
Almeida, quando tinha doze anos de idade, mudou-se para o sudeste da
Ásia. Após viver dois anos na Batávia (atual Jacarta), na ilha de Java,
Indonésia, Almeida partiu para Málaca, na Malásia, e lá, pela leitura de um
folheto em espanhol acerca das diferenças da cristandade, converteu-se do
catolicismo à fé evangélica. No ano seguinte começou a pregar o
evangelho no Ceilão (hoje Sri Lanka) e em muitos pontos da costa de
Malabar.
Não tinha ele ainda dezessete anos de idade quando iniciou o
trabalho de tradução da Bíblia para o português, mas lamentavelmente
perdeu o seu manuscrito e teve de reiniciar a tradução em 1648.
Por conhecer o hebraico e o grego, Almeida pôde utilizar-se dos
manuscritos dessas línguas, calcando sua tradução no chamado Textus
receptus, do grupo bizantino. Durante esse exaustivo e criterioso trabalho,
ele também se serviu das traduções holandesa, francesa (tradução de Beza),
italiana, espanhola e latina (Vulgata).
Em 1676, João Ferreira de Almeida concluiu a tradução do Novo
Testamento, e naquele mesmo ano remeteu o manuscrito para ser impresso
na Batávia; todavia, o lento trabalho de revisão a que a tradução foi
submetida levou Almeida a retomá-la e enviá-la para ser impressa em
Amsterdamã, na Holanda. Finalmente, em 1681 surgiu o primeiro Novo
Testamento em português, trazendo no frontispício os seguintes dizeres,
que transcrevemos ipsis litteris:
O Novo Testamento, isto he, Todos os Sacro Sanctos Livros e
Escritos Evangélicos e Apostólicos do Novo Concerto de Nosso Fiel
Salvador e Redentor Iesu Cristo, agora traduzido em português por Joio
Ferreira de Almeida, ministro pregador do Sancto Evangelho. Com todas
as 1icenças necessárias. Em Amsterdam, por Viuva de J. V. Someren. Armo
1681.
Milhares de erros foram detectados nesse Novo Testamento de
Almeida, muitos deles produzidos pela comissão de eruditos que tentou
harmonizar o texto português com a tradução holandesa de 1637.0 próprio
Almeida identificou mais de dois mil erros nessa tradução, e outro revisor,
Ribeiro dos Santos, afirmou ter encontrado número bem maior.
Logo após a publicação do Novo Testamento, Almeida iniciou a
tradução do Antigo, e, ao falecer, em 6 de agosto de 1691, havia traduzido
até Ezequiel 41.21. Em 1748, o pastor Jacobus op den Akker, de Batávia,
reiniciou o trabalho interrompido por Almeida, e cinco anos depois, em
1753, foi impressa a primeira Bíblia completa em português, em dois
volumes. Estava, portanto concluído o inestimável trabalho de tradução da
Bíblia por João Ferreira de Almeida.
Apesar dos erros iniciais, ao longo dos anos estudiosos evangélicos
têm depurado a obra de Almeida, tornando-a a preferida dos leitores de fala
portuguesa.
A Bíblia de Rahmeyer
Tradução completa da Bíblia, ainda hoje inédita, feita em meados do
século XVIII pelo comerciante hamburguês Pedro Rahmeyer, que residiu
em Lisboa por 30 anos. O manuscrito dessa Bíblia se encontra na
Biblioteca do Senado de Hamburgo, na Alemanha.
Tradução de Figueiredo
Nascido em 1725, em Tomar, nas proximidades de Lisboa, o padre
Antônio Pereira de Figueiredo, partindo da Vulgata latina, traduziu
integralmente o Novo e o Antigo Testamento, gastando dezoito anos nessa
laboriosa tarefa. A primeira edição do Novo Testamento saiu em 1778, em
seis volumes. Quanto ao Antigo, os dezessete volumes de sua primeira
edição foram publicados de 1783 a 1790. Em 1819 veio à luz a Bíblia
completa de Figueiredo, em sete volumes, e em 1821 ela foi publicada pela
primeira vez em um só volume.
Figueiredo incluiu em sua tradução os chamados livros apócrifos que
o Concilio de Trento havia acrescentado aos livros canônicos em 8 de abril
de 1546. Esse fato tem contribuído para que a sua Bíblia seja ainda hoje
apreciada pelos católicos romanos nos países de fala portuguesa.
Na condição de exímio filólogo e latinista, Figueiredo pôde utilizarse
de um estilo sublime e grandiloqüente, e seu trabalho resultou em um
verdadeiro monumento da prosa portuguesa. Porém, por não conhecer 85
línguas originais e ter-se baseado tão-somente na Vulgata, sua tradução não
tem suplantado em preferência popular o texto de Almeida.
A Bíblia no Brasil
Traduções parciais
Nazaré. Em 1847 publicou-sé, em São Luís do Maranhão, O Novo
Testamento, traduzido por frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré, que
se baseou na Vulgata. Esse foi, portanto, o primeiro texto bíblico traduzido
no Brasil. Essa tradução tornou-se famosa por trazer em seu prefácio
pesadas acusações contra as "Bíblias protestantes, que, segundo os
acusadores, estariam falsificadas" e falavam "contra Jesus Cristo e contra
tudo quanto há de bom".
Em 1879, a Sociedade de Literatura Religiosa e Moral do Rio de
Janeiro publicou o que ficou conhecida como A primeira edição brasileira
do Novo Testamento de Almeida. Essa versão foi revista por José Manoel
Garcia, lente do Colégio D. Pedro n; pelo pastor M. P. B. de Carvalhosa, de
Campos, Rio de Janeiro, e pelo primeiro agente da Sociedade Bíblica
Americana no Brasil, pastor Alexandre Blackford, ministro do evangelho
no Rio de Janeiro.
Harpa de Israel foi o título que o notável hebraísta P. R. dos Santos
Saraiva deu à sua tradução dos Salmos publicada em 1898.
Em 1909, o padre Santana publicou sua tradução do Evangelho de
Mateus, vertida diretamente do grego. Três anos depois Basílio Teles
publicou a tradução do Livro de Jó, com sangrias poéticas. Em 1917 foi a
vez de J. L. Assunção publicar o Novo Testamento, tradução baseada na
Vulgata latina.
Traduzido do velho idioma etíope por Esteves Pereira, o livro de
Amos surgiu isoladamente no Brasil em 1917. Seis anos depois, J. Basílio
Pereira publicou a tradução do Novo Testamento e do Livro dos Salmos,
ambos baseados na Vulgata. Por essa época surgiu no Brasil (infelizmente,
sem indicação de data) a Lei de Moisés (Pentateuco), edição bilíngüe
hebraico-português, preparada pelo rabino Meir Masiah Melamed.
O padre Huberto Rohden foi o primeiro católico a traduzir no Brasil
o Novo Testamento diretamente do grego. Publicada pela instituição
católica romana Cruzada Boa Esperança, em 1930, essa tradução, por estar
baseada em textos considerados inferiores, sofreu severas críticas.
Traduções completas
Em 1902, as sociedades bíblicas empenhadas na disseminação da
Bíblia no Brasil patrocinaram nova tradução da Bíblia para o português,
baseada em manuscritos melhores que os utilizados por Almeida. A
comissão constituída para tal fim, composta de especialistas nas línguas
originais e no vernáculo, entre eles o gramático Eduardo Carlos Pereira, fez
uso de ortografia correta e vocabulário erudito. Publicado em 1917, esse
trabalho ficou conhecido como Tradução brasileira. Apesar de ainda hoje
apreciadíssima por grande número de leitores, essa Bíblia não conseguiu
firmar-se no gosto do grande público.
Coube ao padre Matos Soares realizar a tradução mais popular da
Bíblia entre os católicos na atualidade. Publicada em 1930 e baseada na
Vulgata, essa tradução possui notas entre parênteses defendendo os dogmas
da Igreja Romana. Por esse motivo recebeu apoio papal em 1932.
A primeira revisão da Bíblia em português feita pela Trinitarian Bible
Society [Sociedade Bíblica Trinitária] foi iniciada no dia 16 de maio de
1837. Essa decisão foi tomada seis anos após a formação da Sociedade. O
primeiro projeto escolhido para a publicação da Bíblia numa língua
estrangeira pela Sociedade foi o português. O rev. Thomas Boys, do Trinity
College, Cambridge, foi encarregado de liderar o empreendimento. No ano
de 1969, em São Paulo, foi fundada a Sociedade Bíblica Trinitariana do
Brasil, com o objetivo de revisar e publicar a Bíblia de João Ferreira de
Almeida como a Edição corrigida e revisada fiel ao texto original.
Em 1943, as Sociedades Bíblicas Unidas encomendaram a um grupo
de hebraístas, helenistas e vernaculistas competentes uma revisão da
tradução de Almeida. A comissão melhorou a linguagem, a grafia de nomes
próprios e o estilo da Bíblia de Almeida.
Em 1948 organizou-se a Sociedade Bíblica do Brasil destinada a
"Dar a Bíblia à Pátria". Essa entidade fez duas revisões no texto de
Almeida, uma mais aprofundada, que deu origem à Edição revista e
atualizada no Brasil, e uma menos profunda, que conservou o antigo nome
Corrigida.
Em 1967, a Imprensa Bíblica Brasileira, criada em 1940, publicou a
sua Edição revisada de Almeida, cotejada com os textos em hebraico e
grego. Essa edição foi posteriormente reeditada com ligeiras modificações.
Mais recentemente, a Sociedade Bíblica do Brasil traduziu e
publicou A Bíblia na linguagem de hoje (1988). O propósito básico dessa
tradução tem sido o de apresentar o texto bíblico numa linguagem comum
e corrente.
Em 1990, a Editora Vida publicou a sua Edição contemporânea da
Bíblia de Almeida. Essa edição eliminou arcaísmos e ambigüidades do
texto quase tricentenário de Almeida, e preservou, sempre que possível, as
excelências do texto que lhe serviu de base.
Uma comissão constituída de especialistas em grego, hebraico,
aramaico e português, coordenada pelo Rev. Luiz Sayão, trabalha em uma
nova tradução das Escrituras para a língua portuguesa, sob o patrocínio da
Sociedade Bíblica Internacional, com o título Nova versão internacional,
da qual já se publicou o Novo Testamento em 1993.
São também dignas de referência: a Bíblia traduzida pelos monges di
Meredsous (1959); A Bíblia de Jerusalém, traduzida pela Escola Bíblica de
Jerusalém (padres dominicanos) e editada no Brasil por Edições Paulinas
em 1981, com notas, e a Edição integral da Bíblia, trabalho de diversos
tradutores sob a coordenação de Ludovico Garmus, editado pela Vozes e
pelo Círculo do Livro, também com notas.

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